quarta-feira, 23 de junho de 2010

Narguilé, quimeras sírias, paz e Copa do Mundo

24/6/2010, Sami Moubayed, Asia Times Online – Traduzido por Caia Fittipaldi

Sami Moubayed é editor-chefe da revista Forward, Síria.

DAMASCO. Semanas antes da Copa do Mundo de Futebol na África do Sul, iniciada dia 11/6, milhões de sírios apaixonados por futebol começaram torcer por seus times preferidos. Nada de opção nacional – a Síria jamais conseguiu qualificação para participar do campeonato –, mas sob as bandeiras de Brasil, Alemanha, Argentina, França, Itália, que se vêem em carros e janelas.

Destaque para as cores da Argélia – único país árabe a participar da competição em 2010.

Quando os jogos finalmente começaram, telões gigantes apareceram nas esquinas estratégicas da capital síria, Damasco, instaladas pela empresa patrocinadora oficial, MTN, empresa de telecomunicações da África do Sul e que opera na Síria.

A possibilidade de assistir aos jogos gratuitamente foi bem recebida pelos fãs de futebol não assinantes da rede Al-Jazeera Sports (que também vendeu direitos para transmissão dos jogos por rádio), ou que não quisessem assistir aos jogos em cafés ou restaurantes. Nos cafés, os fãs de futebol reúnem-se à tarde para festejar seus times, enquanto fazem uma refeição rápida e fumam seu narguilé, shishah.

O movimento para levar a Copa do Mundo ao público sírio – não apenas à elite endinheirada – aconteceu de cima para baixo. 24 horas antes de iniciar-se a competição, o presidente Bashar al-Assad ordenou que a TV estatal síria retransmitisse 22 jogos gratuitamente; para tanto, o Ministério da Informação comprou direitos de transmissão da rede al-Jazeera, que, em 2009, comprara todos os direitos de transmissão de esportes da rede Rádio e Televisão Árabe.

Os sírios conhecem futebol – e conhecem também o sucesso no futebol, esporte que chegou ao Oriente Médio imediatamente depois do final da I Guerra Mundial e do Império Otomano, 56 anos depois de a Associação Inglesa de Futebol ser fundada, em 1863.

Um sírio que visitou Londres durante a guerra, Nuri al-Ibish, trouxe o jogo na volta da viagem, em 1919, e convenceu os soldados britânicos estacionados em Damasco a treinar amadores sírios. O primeiro grande jogo foi disputado em 1920, na várzea de Mezzeh, arredores de Damasco. Sírios contra soldados britânicos.

Ibish jogou no gol do time sírio e comprovou o sucesso de sua empreitada: os sírios arrasaram os ingleses em surpreendente vitória por 4x0. O governante da Síria, Emir Faisal (que seria rei do Iraque), assistiu à partida e presenteou cada jogador com um relógio de ouro, presente oficial do palácio presidencial. Décadas adiante, nos anos 1940s, Ibish, o goleiro, seria ministro.

Desde então o futebol profissionalizou-se na Síria e, hoje, é subvencionado pelo Estado, com equipes em todas as cidades – em Damasco, capital, o principal time é o al-Wihdeh. O exército e a polícia também têm equipes, al-Jaysh e al-Shurta, respectivamente. As equipes, de início, eram constituídas de jovens cadetes das forças armadas e da polícia, que jogavam futebol e, assim, prestavam o serviço militar obrigatório. Ao longo dos últimos cinco anos, essas equipes profissionalizaram-se, foram convertidas em empresas e passaram a contratar jogadores profissionais, para partidas contra equipe se Aleppo, al-Ahli e al-Itihad, ou al-Karameh, da cidade de Homs, na região central do país.

In 1985, a Síria chegou bem próxima de participar da Copa do Mundo de 1986 no México, mas foi desclassificada em derrota por 3x1, pelo Iraque. Adnan Buzzo, veterano comentarista sírio fez história, aquele dia, ao soluçar longamente, ao vivo, na cobertura do jogo. Em 1987, a Síria saiu-se melhor, ao organizar os Jogos Olímpicos Mediterrâneos, na cidade litorânea de Latakia: derrotou a França por 2x1 e garantiu a medalha de ouro no futebol.

Quando o time sírio não está em campo, as lealdades dos fãs de futebol disputam-se duramente, sobretudo quando têm de considerar também batalhas militares sempre tão frequentes na Região. Em 1982, o sucesso da Argélia na Copa do Mundo da Espanha foi encoberto pelo sucesso dos guerrilheiros palestinos nas ruas de Beirute, no vizinho Líbano. Em 2006, nem bem os fãs árabes de futebol acabavam de enrolar as bandeiras, depois da Copa do Mundo, o exército israelense atacou furiosamente o Hizbollah apoiado pela Síria, outra vez no Líbano. Em 2010, quando tanto se fala em nova guerra no Líbano no próximo verão, muitos fãs se perguntam se os israelenses atacarão antes ou depois do apito final na África do Sul.

Os sírios vibraram com o empate que os argelinos arrancaram à Inglaterra, 0x0, e esperam ansiosamente o momento de ver seus irmãos muçulmanos derrotar, em campo, a arrogância dos EUA, na 4ª-feira (23/6/2010, 15h30, hora de Brasília). Um simples empate basta para levar a Argélia à fase seguinte da Copa do Mundo 2010, 90 minutos de choque e horror, com ou sem surge arrasador de gols derrotará a potência ocidental – e dará a todo o mundo árabe mais que um momento de profunda e deliciosa paz.

O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Syria's pipe dreams over World Cup