quarta-feira, 27 de outubro de 2010

EUA: a mídia rendida ao Pentágono: PROSSEGUE o silêncio sobre os “Documentos do Iraque”

PROSSEGUE o silêncio sobre os “Documentos do Iraque” [1]

27/10/2010, Glenn Greenwald, Salon  em: More on the media's Pentagon-subservient WikiLeaks coverage

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

O colunista John Burns do New York Times respondeu às (e reclamou das) críticas que lhe fizemos eu, Julian Assange e vários outros, contra o “perfil” [2] – grotesco, escrito à maneira dos tablóides sensacionalistas sobre “celebridades” do show business – de Julien Assange, e que o NYT destacou como parte central da cobertura, pelo jornal, do vazamento de documentos secretos sobre a guerra do Iraque. Em entrevista de autojustificação a Michael Calderone, do Canal Yahoo! News [3], Burns fez vários comentários que têm de ser examinados de perto:

Burns disse que não se lembra “de jamais, antes, ter sido alvo de campanha tão empenhada em ofendê-lo, agredi-lo e desrespeitá-lo”, e veio com a longa história dos seus 35 anos de serviços prestados ao jornalismo do Times. Contou que sua caixa de mensagem encheu-se de reclamações de professores das principais universidades “Harvard, Yale e MIT”. Algumas das mensagens serviam-se de “linguajar que acho [Burns acha] que aqueles professores não usam em casa, à mesa do jantar”.

Muito bom! Aí está boa notícia, dessas que nos enchem de entusiasmo e esperanças.

Pelo visto, outras pessoas também se sentiram indignadas ao constatar que o jornal que, mais que qualquer outro no planeta, tanto trabalhou para que os EUA atacassem o Iraque, anos depois, ao cobrir o mais impressionante conjunto de informações que o país continuava a ignorar sobre a mesma guerra... encarregou o seu mais celebrado correspondente de guerra e diretor da sucursal do jornal em Londres, para a inglória tarefa de ‘desvendar’ os escaninhos da personalidade de Julian Assange, apresentado, na matéria do NYT, como doente mental, pervertido, criminoso. Há muito, aí, para indignar muita gente!

Os EUA são informados, afinal, sobre mais de 100 mil mortos e sobre torturas a milhares de outros civis... e o NYT põe Burns em primeira página, para pintar retrato horrível, não da guerra, mas de Julian Assange! Imaginem só!

E, depois da chuva de mensagens indignadas que recebeu, todas protestando contra o retrato de Assange pintado por ele, Burns diz que, “de fato, são mensagens que só fazem comprovar o quanto se tornou amargo o discurso dos norte-americanos sobre as duas guerras.”

Oh! Oh! Como se... a amargura do discurso dos norte-americanos sobre duas guerras, não as guerras, fosse o problema! As pessoas estão “amargas” e “amarguradas”... sem motivo algum? Só por causa de duas guerras que se arrastam há uma década? Só porque rios de sangue de homens e mulheres inocentes estão sendo derramados e continuam a correr em vão? Só porque o Pentágono destruiu, devastou, arruinou dois países? Só porque o Pentágono disseminou pelo planeta o regime das prisões norte-americanas, de detenção e torturas, além da ocupação mais brutal? Bobagem! Por que nos deixar amargurar por tão pouco?

As pessoas que tratem, isso sim, de levantar a cabeça (e devem cuidar também de nunca escrever coisas amargas em mensagens endereçadas a John Burns).

Esse, afinal, é o único tema que realmente interessa a John Burns: John Burns.  

Fato é que o próprio Burns já explicara há alguns meses que absolutamente não havia como ele-Burns e seus iluminados e clarividentes colegas jornalistas apoiadores de guerras, quantas mais, melhor – sempre ouvidos e consultados e repetidos como especialistas que ninguém no país deveria questionar, e cujas opiniões deveriam ser seguidas sem contestação –, terem adivinhado [4] que um simples ataque ao Iraque levaria à devastadora violência e à catástrofe humanitária que se vê hoje. Ora! Ninguém nunca esperou que adivinhassem coisa alguma! Bastaria que lessem as muitas, muitas páginas que se escreveram, em todo o mundo, para alertar sobre a iminência de acontecer, no Iraque, exatamente, o que aconteceu.

Do ponto de vista de Burns, ele não “merece” insultos por e-mail, nem palavras amargas. Há aí, isso sim, uma muito amarga, sim, ironia histórica: um laureado repórter de guerra, que se lamuria, em 2010, por receber mensagens ‘amargas’, depois de ter publicado uma das colunas mais vergonhosamente enviesadas e caluniosas, mais viciosas, peça de propaganda pervertida, de destruição de reputação, que se leram no New York Times ... em vários meses.

E há mais:
O perfil de Assange que publicou, diz Burns, “é trabalho jornalístico absolutamente padrão, o mesmo padrão que usamos para qualquer história que tenha, para os EUA, importância similar àquela”. E acrescentou que “(...) o New York Times não faz jornalismo de hagiografia. Nosso negócio é oferecer aos nossos leitores o pleno contexto do qual brotam aqueles documentos” e informação confiável sobre as motivações de Assange. “Sugerir que isso seria alguma espécie de grotesco pecado de lesa-jornalismo, e pintar-me como sociopata, isso, sim, parece-me muito suspeito”.

Aqui chegamos ao xis da questão.

O que Burns escreveu sobre Julian Assange não é, de modo algum, jamais foi, “o padrão jornalístico do The New York Times”.

Quem não saiba disso, ou discorde da generalização, que encontre e exiba, por favor, qualquer artigo, um que seja, publicado no NYT e que exponha as misérias mentais, psicológicas ou de personalidade, de militar norte-americano de alta patente ou de político aliado a militares de alta patente – senador ou general ou presidente ou assessor importante, um lobbyst, que seja, aliado dos militares de alto escalão –, e que o NYT tenha publicado, com redação final costurada a partir só de diz-que-disses, boatos, calúnias e mentiras, ou opiniões buscadas, precisamente, em fontes de inimigos declarados dos militares-figurões. Não há. Nunca houve. Nunca haverá, no NYT, coluna semelhante à que Burns escreveu contra Assange, mas que centre fogo contra militar de alta patente do Pentágono.

Esse tipo de trabalho de demolição de reputação (“não está em seu juízo perfeito”, como disse, em depoimento que Burns cita sobre Assange, um rapaz de 25 que conhece Assange “de vista”) só se aplica a gente à qual os jornalistas do establishment não atribuam qualquer capacidade de influenciar os círculos do poder; pessoas sem influência direta em Washington e, sobretudo, a quem o governo dos EUA despreze.

Para a Washington-do-poder, Assange não passa de “fracassado desgraçado” [5]. O Pentágono o odeia e quer destruí-lo a qualquer custo. Assim sendo, os “jornalistas” que dependem, temem, admiram ou identificam-se com o Pentágono imediatamente adotam o mesmo ponto de vista sobre Assange e sobre seu trabalho e sobre os vazamentos. Por isso, precisamente, Burns atacou Assange tão violentamente.

Depois de publicado o meu artigo em que critiquei sua coluna, na 2ª-feira, Burns telefonou-me; não ele pessoalmente, mas o co-autor da coluna, Ravi Somaiya, que defendeu a coluna, contra o que eu publiquei. Concordei com manter a conversa off-the-record por insistência dele e assim será. Mas eu, na conversa, só fiz repetir que NUNCA HOUVE, no NYT, coluna de difamação contra figurão do Pentágono ou de Washington aliado do Pentágono, no estilo da que Burton e Somaiya assinam contra Assange.

É constatação histórica: nunca houve.

Quanto à frase de que “o NYT não faz jornalismo de hagiografia”, Burns provavelmente esqueceu o que ele mesmo escreveu sobre Sua Santidade o general Stanley McChrystal, depois de Burns haver detonado Michael Hastings pelo atrevimento de publicar na revista Rolling Stone frases do próprio general, ouvidas e gravadas, mas que voltaram, como bumerangue, contra o mesmo general falastrão. Eis o que Burns escreveu [6], ajoelhado em reverência àquele Grande Guerreiro Norte-americano:

“[o que sei] sobre o general McChrystal indica que ele é, como o artigo de Rolling Stone sugeria [7], homem de autoestima elevadíssima, confiante, pouco preocupado com convenções, mas sempre um soldado, alimentado por fé profunda nos ideais militares de “dever, honra, pátria”. Apesar de lhe ter cabido o comando no Afeganistão, que para muitos seria um cálice de veneno, o general trabalha dia e noite para resgatar a fortuna norte-americana lá investida (...) [perdê-lo] é grave infelicidade para os EUA, se se considera que foi afastado do comando um general como McChrystal, general de  coragem e decisões sempre inabaláveis (...)”.

E prossegue:

“O general George S. Patton Jr. foi considerado, em seu tempo, como o general McChrystal no Afeganistão, o melhor, o mais valoroso dos generais guerreiros dos EUA. No Iraque, pouco se sabia do general McChrystal, que lá dirigia missões super secretas, cruciais para fazermos virar a maré contra a Al-Qaeda e a guerrilha sunita, sob o comando do general Petraeus; missão que cumpriu exemplarmente, até assumir o comando no Afeganistão em junho de 2009.”

“Os jornalistas devem saber guardar suas opiniões pessoais, para preservar a visão imparcial. Mas posso dizer, sem medo de excesso, que muitos homens e mulheres que acompanharam como jornalistas o trabalho do general McChrystal como comandante no Afeganistão, ou, antes, como comandante máximo das Forças Especiais dos EUA, todos o admiravam muito. E todos se sentiram incomodados com o material publicado pela revista Rolling Stone que pôs fim a sua carreira.”

A impressão que se tem é que Burns escreveu em posição de sentido, batendo continência a uma fotografia do general. Talvez estivesse ajoelhado. O único leve sinal de algum tipo de crítica aparece como infiltrado: McChrystal “tropeçou catastroficamente” [8], ao confiar num “perdedor desgraçado”, jornalista out, excluído do establishment, não-coroado, safado, vagabundo, como Michael Hastings, que não sabe respeitar, o idiota – ou que não se rendeu –, às leis de preservação de generais que os Verdadeiros Jornalistas sempre usam nos exercícios de veneração que chamam de “cobertura do Pentágono”. E apesar de haver escrito 2.700 palavras carregadas de elogios a McChrystal, Burns não faz qualquer referência a coisinhas como o envolvimento de McChrystal no escândalo Pat Tillman, nem a tortura generalizada no Iraque em prisões sob seu comando, até que um leitor escreveu e perguntou-lhe. Então, Burns tocou nesses tópicos, o suficiente, só, para desmentir tudo. O jornalismo de Burns, sempre que escreve sobre McChrystal é exemplar, é a definição, de hagiografia jornalística. (...)

“Hagiografia” é exatamente o que faz a mídia do establishment nos EUA na cobertura dos políticos mais poderosos e dos líderes militares. E a mesma mídia reserva toda a vilania mais ativa contra os desprezados pelos poderosos de Washington. Julian Assange é hoje o odiado da vez.

A agenda da grande mídia nos EUA submete-se tão completamente à agenda do Pentágono, e a cobertura que estão dando aos documentos vazados por WikiLeads é tão pífia, vários grandes jornalistas, respeitados nacionalmente, já começaram a desmentir jornais e jornalistas, muitos deles sem omitir nomes.
John Parker, ex-repórter militar e professor do Centro Knight de Especialização em Jornalismo – Cobertura de Atividades Militares da University of Maryland, escreveu e publicou ontem uma carta excepcional, que merece ser lida “A atenção que a “grande” mídia nos EUA não deu aos “Documentos do Iraque” não deveria surpreender ninguém” , 26/10/2010, Romenesko Letters, John Parker.


Notas de Rodapé:

[1] Sobre o mesmo tema, ver também blog redecastorphoto, em; Assange – WikiLeaks, ao vivo, pro entrevistador, ontem à noite:    , WikiLeaks divulga arquivo secreto da Guerra do Iraque  e WikiLeaks: novas imagens dos crimes americanos no Iraque (em inglês). Matéria do The Independent de Londres, traduzida, no blog redecastorphoto, em: WikiLeaks: A vergonha dos EUA exposta

[2] O artigo comentado está em WikiLeaks Founder on the Run, Trailed by Notoriety  (em inglês)

[3] A entrevista pode ser vista e ouvida em:  NY Times reporter defends profile of WikiLeaks’ Assange (em inglês)

[4]
O artigo citado está em: The "nobody could have known" excuse and Iraq (em inglês)

[5] O artigo está em: Pentagon Sees a Threat From Online Muckrakers (em inglês)


[7] Comentado em: The Formula. (em inglês)