sábado, 13 de novembro de 2010

Saber mais sobre al-Qaeda, sobre a China

11/11/2010, Francesco Sisci, Asia Times Online - Understand al-Qaeda, understand China
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu 
Francesco Sisci é editor para a Ásia de La Stampa. Recebe e-mail em fsisci@gmail.com

PEQUIM – Imaginemos que a China não fosse governada por partido comunista. Imaginemos que lá houvesse democracia à moda ocidental, como nos EUA ou por algum modelo europeu. Imaginemos que, por algum acidente histórico, a China tivesse permanecido à margem do desenvolvimento global até há 30, quando teve início um estranho experimento econômico e o crescimento explodiu e alcançou as taxas que hoje vemos.

Os laços entre China e EUA, e entre China e seus vizinhos, ou com a Europa, seriam diferentes? Provavelmente não, porque, em função do desenvolvimento da China e o impacto que tenha no mundo, há hoje muito mais em jogo do que simplesmente o comunismo.

Já não plenamente dedicados às intervenções militares no Iraque e no Afeganistão, os EUA voltam a preocupar-se focadamente com o crescimento da China. As questões comerciais e do yuan chinês voltaram a dominar o horizonte político nos EUA. Simultaneamente, voltam às manchetes como sempre exclusivamente o sistema político chinês e as questões de direitos humanos.

O papel do fracasso de duas guerras norte-americanas, na atual crise financeira e na deterioração do gigantesco capital político que os EUA tinham acumulado depois do colapso do império soviético é tema de A World Without Islam, livro no qual Graham E. Fuller propõe questão crucialmente importante, quase dez anos depois do 11/9.

Muito resumidamente, Fuller argumenta que os atuais problemas que há no Oriente Médio lá estariam ainda que não houvesse Islã. O Islã pouco alterou o quadro geral e, onde alterou, as diferenças foram insignificantes. Sem o Islã, é provável que hoje houvesse conflito entre grupos cristãos: o mundo católico-protestante versus o mundo ortodoxo (que bem poderia ser dominante no Oriente Médio).

No mundo islâmico não há hoje qualquer acordo ou qualquer unanimidade em relação a alguma agenda política agressiva. Se houvesse, haveria Estados muçulmanos já em guerra contra o Ocidente. O que há é uma organização subterrânea (al-Qaeda) que tenta mobilizar todo o mundo muçulmano para a guerra. A tentativa não tem tido sucesso. A al-Qaeda não conseguiu mobilizar Estados muçulmanos – embora se possa dizer que, sim, a al-Qaeda foi muito bem-sucedida no projeto de arrastar os EUA para duas guerras sem propósito, que fazem os EUA sangrarem hoje como nunca antes, em termos financeiros, políticos e mentais-espirituais.

O “modelo” da al-Qaeda poderia dar certo também para a China? A China é “ideológica” no sentido de que é governada por partido comunista, mas já há muito tempo deixou de tentar exportar sua ideologia ou expandir seu controle político para outras partes do mundo. Antes, Mao Tse Tung ainda apoiava alguns partidos “maoístas” pelo mundo. E sim, ainda há disputa entre os chineses, com alguns que bem gostariam que a China falasse mais grosso em todo o mundo, já fartos da “ordem mundial dominada pelos EUA”. São exceção ou são maioria dominante?

Nesse caso, como também na questão islâmica, a realidade subjacente é complexa. Hoje, os chineses vivem a dificuldade de terem de traduzir toda uma tradição médica extraordinariamente complexa, em termos de ‘doenças’ ocidentais. Têm de traduzir o “shang huo” (“fogo que sobe”) em termos de “indigestão” ou “dor de dente”. Não bastasse o problema da tradução, há também o problema de por que um país onde vivem 1,4 bilhões de pessoas teria de aceitar sem discutir as ideias e as regras que lhe queira impor um mundo (chamado “Ocidente”) que, somando-se Europa e EUA (e dependendo de onde se desenhem as fronteiras), não chega à metade da população chinesa?

E há também questões pontuais: o que fazer com a valorização da moeda chinesa? Ou o que fazer quando um barco pesqueiro chinês entra em rota de colisão com barcos de Estados vizinhos?

O que se vê é que fés dogmáticas dos dois lados tornam a compreensão mais difícil – especialmente se essas fés combinam-se com complexas e sensíveis questões de identidade.

A solução, pelo argumento de Fuller, para o mundo islâmico, bem pode ser contraintuitiva. Afinal, noções hoje generalizadas no mundo contemporâneo de que a Terra é redonda e gira em torno do Sol são contraintuitivas: o que se vê é Terra sempre plana e fixa, e Sol que anda à volta dela, sempre se vai à noite e sempre volta pela manhã, aí, frente aos nossos olhos.

A questão crucial é a ordem do novo mundo e o lugar relativo nela reservado à China, sobretudo se se o compara ao lugar reservado a EUA, Índia, Japão, Rússia ou Europa.

É questão complexa, tornada ainda mais complexa pela tendência da China de jamais desviar o olhar dos EUA, esquecendo muitas vezes de prestar atenção aos seus oito vizinhos, entre os quais a Índia, o Japão e o Vietnã. Por outro lado, observadores distanciados tendem a não considerar o sofrimento que a China se autoimpôs para crescer. A China sacrificou no altar do desenvolvimento, cerca de 400 milhões de crianças – os filhos que não nasceram por causa da política de um filho por casal.

Crianças são o que há de mais parecido a entidades divinas nas famílias chinesas que tradicionalmente não são religiosas; filhos são vistos como objetivo da vida dos casais e continuação da memória dos ancestrais. Mesmo assim, em nome do desenvolvimento, as famílias chinesas aceitaram cortar na própria carne e tiveram menos filhos. Além disso, em anos ainda recentes, cerca de 50 milhões de chineses morreram de fome, depois do fim do sonho do “Grande Salto Adiante”; e toda a população urbanizada foi perseguida e torturada e padeceu durante 10 anos, sob as ilusões da Grande Revolução Cultural.

O que algum estrangeiro poderá fazer aos chineses, que os chineses já não se tenham feito padecer, eles mesmos, nos últimos 60 anos? Dito de outro modo, é difícil pensar que haja nação na Terra capaz de impor à China o que não interesse à China; ou que a China se veja algum dia reduzida à condição de ter de aceitar imposições. Há na China hoje alguns linhas-duras que vêem vantagem, até, em alguma grande guerra do Ocidente contra a China. Dizem que essa grande guerra reduzirá à metade a população chinesa, não destruirá a China e, de fato, a fortalecerá.

Se for atacada, por mais terríveis que sejam as perdas, a derrota militar ou até a derrota em ataque com armas atômicas, em todos os casos a China resistirá e expandirá sua influência e poder e intimidará o resto do mundo. Há quem diga que, se houver 400 milhões de mortos, bastará que a China suspenda a política de um filho por casal e, em trinta anos, a população voltará aos 1,4 bilhões de hoje. De diferente, só, que esses chineses sobreviventes e renascidos conhecerão a extensão da ameaça que pesa sobre eles e saberão defender-se (se não decidirem começar por buscar vingança ou reparação).

De fato, faltam saberes, conhecimento, confiança, para diminuir a animosidade e as disputas. Como bem se vê hoje, se os EUA já soubessem que sabem muito pouco sobre o mundo muçulmano e a al-Qaeda, seriam hoje mais ricos e mais poderosos; com certeza não estariam em pior situação do que estão.

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