segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Por quanto tempo Mubarak aguentará?

Robert Fisk

31/1/2011, Robert Fisk, The Independent, UK
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

A senhora, idosa, de véu vermelho, estava parada a polegadas de um tanque M1 fabricado nos EUA, do 3º Exército Egípcio, bem à margem da Praça Tahrir. Os soldados eram paramilitares, alguns com barretes vermelhos, outros com capacetes, barreiras de fuzis apontadas para a praça, metralhadoras pesadas armadas nos tabiques. “Se atirarem contra o povo egípcio, Mubarak está acabado” – disse ela. “E se não atirarem contra o povo egípcio, Mubarak está acabado”. O povo no Egito está tomado dessa sabedoria. 

Pouco antes de amanhecer, quatro F-16 Falcons – outra vez, é claro, fabricados no país do presidente Obama – apareceram ganindo sobre a praça, os ecos reverberando nas paredes cinzentas do gigantesco prédio nasserista, seguidos por dezenas de milhares de olhos que se erguiam da praça para o céu. “Estão conosco”, muitos gritaram. Acho que não, pensei. Nem os tanques, novos na praça, ao todo 14 que apareceram sem slogans grafitados, os soldados, assustados, não saíram das cabines – e que os manifestantes também acreditavam que ali estivessem para protegê-los. 

Mas então, quando me aproximei de um oficial num dos tanques, vi que abria um sorriso. “Jamais atiraremos contra nosso povo, ainda que venham ordens para atirar” – ele gritou, para fazer-se ouvir acima do barulho do motor. Tampouco me convenceu completamente. O presidente Hosni Mubarak – ou talvez se deva escrever ‘presidente’, entre aspas, estava no quartel-general, depois de nomear a nova junta de ex-militares e agentes de inteligência. Os boatos zuniam pela praça: o velho lobo lutaria até o fim. Para outros, não faria diferença. “Poderá matar 80 milhões de egípcios?” 

Começaram a crescer sentimentos de antiamericanismo, depois de o presidente Obama ter mantido o apoio de sempre, embora morno, ao governo de Mubarak. “Não Obama, Não Mubarak” – lia-se em vários cartazes. Mubarak, com uma estrela de Davi pintada sobre o rosto. Muita gente apanhava do chá caixas vazias de balas de festim usadas semana passada, todas com o selo “Made in the USA”. Vi que o tanque que vinha à frente tinha letras semiapagadas na lateral, que começavam com “MFR” – mas foi quando um soldado com rifle e baioneta receber ordem para me prender; corri para dentro da multidão e ele desistiu –, mas será que “MFR” é a sigla correspondente a US Mobile Force Reserve [Força Móvel de Reserva dos EUA], que mantém tanques em território egípcio? Essa coluna de tanques teria sido emprestada pelos EUA? Fácil ver o uso que os egípcios deram aos tanques. 
Mohamed ElBaradei, front left, with a crowd of supporters in Cairo yesterday
Mohamed El Baradei, em frente à esquerda com os manifestantes ontem, no Cairo
Assisti a cenas extraordinárias antes, durante o dia, misturado à multidão, entre os manifestantes e os soldados que conduziam outra unidade de tanques (naquele caso, máquinas velhas, Pattons M-60, do tempo do Vietnã), que parecia estar ali para dar cobertura aos canhões de água mandados para dispersar a multidão. Centenas de jovens cercaram um dos tanques e quando um tenente de óculos escuros atirou para o ar, foi empurrado contra o próprio tanque e obrigado a escalá-lo para fugir dos rapazes. Mas a multidão logo mudou de humor; os rapazes posaram para fotografias sobre o tanque e ofereceram frutas e água aos soldados. 

Quando uma longa coluna de soldados formou-se na largura da rua, um homem muito velho e corcunda, pediu e obteve licença para aproximar-se. Segui-o e vi abraçar e beijar o tenente nos dois lados do rosto; disse “Vocês são nossos filhos. Vocês são nosso povo”. Em seguida andou ao longo da coluna, beijando e abraçando cada soldado, como se fosse seu filho. É preciso ter coração de pedra para não se emocionar com essas cenas de que ontem o dia foi cheio. 

Às tantas, um grupo de manifestantes trouxe um homem que disseram ter apanhado roubando – no momento, o Cairo parece estar cheio de ladrões – e empurraram na direção dos soldados. “Vocês estão aí para nos proteger” – cantavam. Um dos soldados bateu no homem, no rosto, e o oficial esbofeteou o soldado. O soldado sentou na calçada, balançando a cabeça, desentendido. Durante todo o dia, um helicóptero egípcio Mi-25 – este, relíquia da era soviética – sobrevoou a multidão, armado com seis foguetes, mas nada fez. Depois foi um Gazelle, de fabricação francesa, da Força Aérea do Egito, que voou sobre a multidão, e as pessoas acenaram na direção de onde se via o piloto, que também acenava em resposta. 

Os egípcios, sem cessar, procuravam fazer contato com quem lhes parecesse estrangeiro – e um inglês de cabelos grisalhos como eu pareci-lhes suficientemente estrangeiro –, insistindo em que, depois que um povo perde o medo, não há como voltar a acovardar-se. 

Demonstrators on the streets defy tanks in Tahrir Square
Manifestantes nas ruas desafiando os tanques

“Nunca mais teremos medo”, gritava uma jovem na minha direção, no momento em que os jatos gritavam também. E um ex-policial, que se apresentava como atual homem  de ligação entre os manifestantes e o exército disse que “o exército estará conosco, porque eles sabem que Mubarak tem de sair”. Outra vez, não estou muito convencido. 

E os saques e incêndios continuam. O ex-policial – que disso parecia entender – disse-me que muitos dos saqueadores são de um grupo que fez parte do Partido Democrático Nacional de Mubarak, cuja função fora a de convencer os egípcios a comparecer às urnas e votar em seu amado líder. Nesse caso, por que, todos nos perguntamos, esses homens estariam dedicados a assaltos e saques, exatamente os mesmos crimes de que os acusam todos os que exigem que Mubarak deixe o país? Essa exigência, aliás, inclui também Omar Suleiman, cuja expulsão a multidão deseja, o ex-espião chefe, que acaba de ser nomeado para a vice-presidência. 

Por todo o Egito, em praticamente todas as ruas do Cairo, há hoje vigilantes – cidadãos comuns, não homens de Mubarak, cansados das gangues semioficiais que hoje assaltam o próprio povo na calada da noite. Para voltar ao hotel ontem à noite, tive de passar por oito postos de controle controlados por civis, jovens e velhos – um deles manteve-se perfilado, com uma bengala numa mão e um velho rifle britânico Lee Enfield .303 na outra – que agora prendem os ladrões e saqueadores e os entregam ao exército. Não é o “Exército de Papai” [1]. 

Nas primeiras horas da manhã de ontem, um grupo de homens armados invadiu o Children's Cancer Hospital, próximo do velho aqueduto romano. Queriam levar equipamento médico, mas foram expulsos por manifestantes que os ameaçaram com facas e os expulsaram. O Dr. Khaled el-Noury, cirurgião chefe do hospital contou-me que os assaltantes armados pareciam desorganizados e pareciam assustados. 

Não à toa. O encarregado da recepção no hospital mostrou-me o facão de cozinha que guarda na gaveta para proteger-se. E vi outros sinais do lado de fora do portão, onde havia homens armados com bastões e porretes. Um menino – oito anos, talvez – apareceu portando um facão de açougueiro, de 50cm, quase metade da altura do menino. Outro homem apareceu cumprimentar o jornalista estrangeiro, com um facão do mesmo tamanho. 

Não há terceira força. E eles creem no exército. Os soldados atacarão a praça? E que diferença, fará, afinal, que ataquem ou não, para a partida de Mubarak?





Nota de tradução
[1] Orig. Dad's Army. É título de um seriado da televisão britânica sobre a Guarda Nacional, durante a II Guerra Mundial, levado ao ar com grande sucesso entre 1968 e 1977. A Guarda Nacional foi formada de voluntários incapazes para o serviço militar ativo.

Fúria, fúria, contra a contrarrevolução

Pepe Escobar
1/2/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online 
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Fúria, fúria, contra a morte da luz.
- Dylan Thomas

Islamófobos de todo o mundo calem o bico e ouçam o som do poder do povo. A dicotomia artificial que inventaram para o Oriente Médio – ou a ditadura de vocês ou o jihadismo – jamais passou de truque barato. Repressão política, desemprego em massa e comida cara são mais letais que um exército de homens-bomba. Assim se escreve a história real; um país de 80 milhões – dois milhões dos quais nascidos depois de o ditador de hoje ter chegado ao poder em 1981, e nada menos que o coração do mundo árabe – põe afinal abaixo o Muro do Medo e passa para o lado do autorrespeito. 

O neofaraó egípcio Hosni Mubarak ordenou toque de recolher; ninguém arredou pé das ruas. A polícia atacou; os cidadãos organizaram a própria segurança. Chegaram os tanques; a multidão continuou a cantar “de mãos dadas, o exército e o povo são aliados”. Nada de revolução colorida parida em think-tanks, nada de islâmicos em ordem unida; são egípcios médios, carregando a bandeira nacional, “juntos, como indivíduos num grande esforço cooperativo para exigir de volta o país que nos pertence” – nas palavras do romancista egípcio e Prêmio Nobel Ahdaf Soueif. 

E então, inevitável como a morte, a contrarrevolução levantou a cabeçorra armada. Jatos bombardeiros made in USA e helicópteros militares atacaram “bravamente” em vôos rasantes as multidões na Praça Tahrir [Praça Liberdade] (retrato do governo de Mubarak como exército de ocupação no Egito; e imaginem o ultraje do ocidente, se o ataque acontecesse em Teerã). Comandantes militares falando sem parar pela televisão estatal. Ameaça de que tanques de fabricação norte-americana tomariam as ruas – conduzidos por soldados de batalhões de elite – para o ataque final (embora os próprios soldados dissessem a jornalistas da rede al-Jazeera que em nenhum caso disparariam contra a multidão). Para coroar, a “subversiva” rede al-Jazeera foi repentinamente cortada do ar. 

Diga alô ao meu suave torturador... 

A Intifada egípcia – dentre outros múltiplos significados – já reduziu a cacos a propaganda inventada no ocidente, de que “árabes são terroristas”. Agora, as mentes afinal descolonizadas, os árabes inspiram o mundo inteiro, ensinam ao ocidente como se faz mudança democrática. E adivinhem só! Ninguém precisou de “choque e horror”, rendições, tortura e trilhões de dólares do Pentágono para que a coisa funcionasse! Não surpreende que Washington, Telavive, Riad, Londres e Paris, todas, nem suspeitaram do que estava a caminho. 

Hoje somos todos egípcios. O vírus latino-americano – bye-bye ditaduras e neoliberalismo arrogante, caolho, míope – contaminou o Oriente Médio. Primeiro a Tunísia. Agora o Egito. Depois o Iêmen e possivelmente a Jordânia. Logo a Casa de Saud (não surpreende que culpem os egípcios pelos “tumultos”). Mas o terremoto político do norte da África, na Tunísia, em 2011 também colheu a faísca dos movimentos de massa na Europa em 2010 – Grécia, Itália, França, Reino Unido. Fúria, fúria contra a repressão política, contras as ditaduras, contra a brutalidade da Polícia, contra os preços da comida, contra a inflação, contra empregos miseráveis, contra o desemprego em massa. 

Faraó 2011 parece remix de Xá do Irã 1979. Claro, não há aiatolá Ruhollah Khomeini para liderar as massas egípcias, e o ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica, o egípcio Mohamed El Baradei, está sendo acusado por alguns, nas ruas, de “assaltar nossa revolução”. Mas é difícil não lembrar que o Xá do Irã está enterrado no Cairo, porque os iranianos não permitiram que fosse enterrado na terra-mãe. 

O Faraó reagiu à Intifada nomeando para a vice-presidência seu czar “suave” da inteligência, Omar Suleiman (o primeiro vice-presidente, desde que o Faraó assumiu o poder em 1981), e virtual sucessor. Suleiman é sinistro suave especialista em rendição, no qual a CIA confia e que supervisionou número incontável de sessões de tortura de ditos “terroristas” em território egípcio; senhor, que fala inglês, de sua Guantánamo árabe. Em Washington, o establishment gostou muito. 

Mas os imperialistas que anotem bem: a última vez que as ruas egípcias levantaram-se como levantaram-se hoje, foi em 1919, durante a revolução contra os britânicos. Agora, para muçulmanos e cristãos, operários, classe média, massas desempregadas, advogados, juízes, professores e doutores da Universidade al-Azhar, alunos, camponeses, teólogos, jornalistas e blogueiros independentes, ativistas da Irmandade Muçulmana, Associação Nacional para a Mudança, Movimento 16 de abril, para todos esses, os dias de Mubarak de Revolução dos Bichos estão contados. 

Cinco movimentos de oposição – inclusive a Fraternidade Muçulmana – autorizaram El Baradei a negociar a formação de um “governo de salvação nacional” de transição. Aposta-se que o Faraó nada ou quase nada negociará. Para aumentar a complexidade o núcleo da geração de jovens ativistas crê muito mais em “comitês populares” que em El Baradei. 

É verdade que, no que tenha a ver com as próximas eleições em setembro, Mubarak, 82, está morto. O filho, Gamal, 47, idem. Relatos não confirmados dizem que, à moda típica dos filhos de ditadores, o filho já fugiu para Londres, usando seu passaporte britânico, com montanhas de bagagem, e estaria agora escondido na casa londrina da família, em Knightsbridge. 

O futuro crucial imediato depende do lado para o qual penderá o exército egípcio. No pé em que estão as coisas, ainda não está totalmente afastado uma alternativa Tiananmen – repressão linha duríssima. Seja como for, o poder de ação do governo é claro; pode acontecer até de o Faraó meter-se naquele avião – como cantam as ruas –, mas o regime, a ditadura militar, tem de ser mantida. 

O general Hussein Tantawi, comandante em chefe do exército e ministro da Defesa, amigo que bebe o vinho e come a comida do Pentágono, do qual recebe 1,3 bilhões de dólares anuais a título de “ajuda” – voou de volta ao Cairo. Numa trilha paralela, o Faraó, jogando desesperadamente com os medos do ocidente sobre “estabilidade”, tentou desqualificar a Intifada como grupo de desordeiros e arruaceiros donos de terrenos nas favelas, que querem ver cada vez mais caos e destruição. Um grupo de blogueiros egípcios não tem dúvidas – a estratégia do Faraó é assustar as pessoas e empurrá-las de volta para dentro das casas, implorando por “segurança”. 

Issander El Amrani, do blog The Arabist , destaca que “é difícil acreditar que Mubarak ainda esteja no poder, mas o núcleo duro do regime está usando meios extremos para salvar sua posição”. Nas ruas, todos suspeitam de um golpe orquestrado por Washington na cúpula do regime – EUA/Israel apostando tudo na fórmula “Mubarak talvez caia/mas sem mudança de regime”, com sauditas, israelenses e a mídia egípcia oficial mexendo todos os pauzinhos para desacreditar a revolução. Para analisar com algum distanciamento: nos EUA houve dois governos de Ronald Reagan, um de George H W Bush, dois de Bill Clinton, dois de George W Bush e um de Barack Obama. No Egito, sempre só houve Mubarak. 

A classe média egípcia, empobrecida, mas letrada e orgulhosa, e a os trabalhadores, nada querem além de um país regido por leis e com eleições transparentes. Como, então, acreditariam em Suleiman, torturador ligado à CIA, para conduzir a transição? Para nem falar de um Parlamento completamente controlado pelo inacreditavelmente corrupto Partido Nacional Democrático de Mubarak, cuja sede foi incendiada pelos manifestantes. 

O passo do dissidente egípcio 

No início de 2003, passei dois meses no Cairo e em Alexandria, à espera da invasão de Bush ao Iraque – convivendo quase exclusivamente com o oceano de rejeitados pelo sistema de Mubarak, de universitários formados a imigrantes sudaneses, inclusive representantes rejeitados dos 40% da população que vive com menos de 2 dólares por dia. Desnecessário dizer que todos viam Mubarak como poodle repulsivo de Washington – e todos estavam em choque ante a tragédia do Iraque, que o Egito reverencia historicamente como flanco leste da nação árabe. O regime, para eles, era do tipo que “afoga mendigos no Nilo”. 

Foi elucidativo – e terrivelmente doloroso – conhecer em campo as consequências do regime de Mubarak, aplicado regime pupilo do neoliberalismo aplicado pelos EUA. Consequências inevitáveis, a inflação alta e o enorme desemprego. A classe média urbana praticamente já desaparecera. A classe trabalhadora, sufocada na mão de ferro dos sindicatos. E a classe média rural – que foi base do regime – também em crise, com os jovens obrigados a imigrar para as cidades à procura de empregos (que não encontram). Sobrevivente, só uma pequena classe de comerciantes, corruptos, associados ao Estado (a maioria dos quais hoje já fugiu para Dubai em jatos privados). 

Não surpreende, pois que não se trate de uma revolução islâmica, como no Irã em 1979. É a economia, estúpido. O Islã hoje no Egito está dividido em duas correntes: salafitas não politizados e a Fraternidade Muçulmana – dizimada por décadas de repressão e tortura e, hoje, sem qualquer programa político explícito, além de oferecer serviços de assistência à população negligenciada pelo Estado. 

O fato de a Fraternidade Muçulmana ter-se mantido nas coxias do movimento das ruas explica-se por dois fatores. Se se expusesse demais, Mubarak teria o pretexto perfeito para associar a revolução aos “terroristas”. Além disso, a Fraternidade avalia que, hoje, é apenas um ator entre vários. 

Trata-se de movimento popular espontâneo que segue as pegadas do Kefaya (“Basta!”) – movimento popular “amarelo” (escolheu essa cor), de intelectuais e ativistas políticos, cujo slogan, já em 2004 era La lil-tamdid, La lil-tawrith (“Não a outro mandato, não queremos uma república hereditária”). 

O movimento Kefaya, apesar de ser movimento de elite, sem liderança, não-ideológico, foi a faísca que despertou mais de mil movimentos, dentre os quais “Jornalistas pela Mudança”, “Operários pela Mudança”, “Médicos para a Mudança” ou “Jovens para a Mudança” levaram à atual onda de incontáveis fóruns online em que se reúnem cidadãos urbanos, de classe média e baixa, todos usuários experientes da internet. 

Outro desenvolvimento crucial foi a greve, em 2008, dos trabalhadores das indústrias têxteis da cidade de Mahalla al-Kubra no delta do Nilo, onde três operários foram mortos pelos guardas de segurança de Mubarak dia 6 de abril – e que inspirou a criação do movimento online de nome Juventude de 6 de abril - "April 6 youth" (Sobre o movimento, ver Cairo Activists Use Facebook to Rattle Regime). 

O Santo Graal demorou para mobilizar as massas. Semana passada, afinal, conseguiram. Os jovens influenciados pelo movimento Kefaya preferem comitês populares para guiar os passos futuros de sua revolução, em vez de políticos. O pulso das ruas parece indicar que a maioria dos egípcios não quer que nenhuma ideologia política ou religiosa monopolize o que é movimento líquido, pluralista, múltiplo para reformar radicalmente o país e criar ali um novo modelo para o mundo árabe. Talvez um pouco sedutoramente romântico demais. Mas que tenha vivido 30 anos numa espécie de Revolução dos Bichos precisa dolorosamente de alguma catarse. 

Rebelo-me, logo, existo 

Para Fawaz Gerges, professor de economia da London School of Economics, tudo isso “ultrapassa em muito o problema Mubarak. A barreira do medo foi removida. É realmente o começo do fim do status quo na Região.” Que é maior que Mubarak, é; é exemplo vigoroso do que seja ativismo político orgânico, de base. 

Ora, no discurso de elite do Dr. Zbigniew Brzezinski, guru de política exterior dos EUA, trata-se de seu temido “despertar político global” em ação – a Geração Y em todo o mundo em desenvolvimento, furiosa, irada, ultrajada, emocionalmente em frangalhos, quase toda desempregada, com a dignidade em farrapos, deixando aflorar seu potencial revolucionário e virando o status quo de cabeça para baixo (mesmo depois de o Faraó ter conseguido implantar o maior blecaute da história da Internet). 

Assim como o movimento Kefaya foi a fagulha, essa foi também uma revolução do Facebook – que hoje, nas ruas do Cairo, Alexandria e Suez já foi rebatizado e chama-se agora Sawrabook (“o livro da revolução”). Uma rede RASD (“de monitoramento”, em árabe) foi lançada no primeiro dia dos protestos, 4ª-feira passada, configurada como uma espécie de “observatório da revolução”. 

É crucialmente importante observar que naquele momento – há menos de uma semana – a rede al-Jazeera ainda não chegara ao Egito e a televisão estatal egípcia exibia, como sempre, velhos filmes em branco e preto. Em apenas três dias, a RASD reuniu em rede cerca de 400 mil usuários, no Egito e no mundo. Quando o regime do Faraó acordou, já era tarde demais – e de nada lhe serviu derrubar a internet. 

É esse espírito de solidariedade em ação que invadiu as ruas sob a forma de jovens ativistas operando telefones sem fio, fotografando e filmando ataques e feridos ou montando tendas para atendimento de campanha. Ou moradores da cidade do Cairo, oferecendo as próprias casas para abrigar manifestantes e organizando piquetes de vizinhos para proteger-se da ação de saqueadores e ladrões – muitos dos quais mostrados por blogueiros, quando carregavam equipamentos de identificação dos postos armas retiradas dos postos de polícia de Mubarak. 

Por mais alarmadas que estejam as rarefeitas elites globais – basta seguir o labirinto de ambiguidades que liga Washington e as capitais europeias –, Brzezinski, pelo menos, parece suficientemente ligado para entender a deriva geral, quando “as principais potências mundiais, novas e velhas (...) enfrentam uma nova realidade: embora a letalidade do poder bélico seja hoje maior do que nunca, a capacidade de impor controle a massas que já despertaram para a vida política alcança hoje o ponto mais baixo de toda a história.” 

A velha ordem está morrendo, mas a nova ainda não nasceu. A Idade da Fúria no arco que vai da África do Norte ao Oriente Médio parece ter começado – mais ainda não se sabe qual será a nova configuração geopolítica. O povo se fará ouvir – ou acabará encurralado e controlado pelas potências que aí estão? 

O Egito não se converterá em democracia que funciona porque falta a infraestrutura política. Mas pode recomeçar do começo, com todas as oposições tão desprestigiadas quando o regime. A geração mais jovem – potencializada pela emoção de estar lutando do lado certo da história – terá papel crucial. 

Não aceitarão a ilusão de ótica de alguma falsa mudança de regime, só para preservar alguma “estabilidade”. Não aceitarão ser sequestrados por EUA e Europa, apresentados como neofantoches. Querem o choque do novo; governo verdadeiramente soberano, nada de neoliberalismo e uma nova ordem política para o Oriente Médio. 

A contrarrevolução será feroz. E atacará muito mais do que alguns bunkers no Cairo.

Egito: o Irã ganha e Israel perde

MK Bhadrakumar

1/2/2011, *M K Bhadrakumar, Asia Times Online – Crise no Egito
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

As duas potências regionais mais afetadas pelo torvelinho no Oriente Médio serão Irã e Israel. A vida, tantas vezes, oferece estranhos paralelos e há muitas coisas em comum entre os dois adversários e desafetos intratáveis.

São dois países não-árabes, ambos curiosamente “estáveis” numa região sacudida num vendaval. Ninguém aponta dedo acusador a nenhum deles, como “mão oculta” ativa por trás do torvelinho que agita o país vizinho de ambos – nem os piores detratores. De fato, parece que os dois países foram surpreendidos pela torrente de eventos, sem saber como assimilar o indefinido e ainda inimaginável significado do que está acontecendo no Egito.

Os dois países são suficientemente espertos para saber que pequenas fagulhas iniciam erupções de dimensões vulcânicas – um trem blindado correndo da Alemanha para a Rússia; um sermão pregado por velho imã no exílio, nos arredores de Paris, à sombra de uma macieira; ou um policial cuja consciência o faça desobedecer a ordens para atirar contra manifestantes numa rua de Tirana. E nenhum dos dois países pode adivinhar que segredos as ruas do Cairo ainda revelarão ao mundo.

Mas há também diferença fundamental entre eles. Para o Irã, tudo se resume a determinar o tamanho da vitória. Para Israel, trata-se de conter as perdas. E é verdade também que, se o vencedor não leva tudo, algo perde.

O Irã surfa a crista da onda
Teerã manifestou-se rapidamente em apoio ao levante popular no Egito. Foi a única voz a manifestar-se, solitária, na região. Círculos religiosos, políticos e militares manifestaram-se em Teerã, e o ministério das Relações Exteriores falou (“O Irã monitora os acontecimentos regionais”, 30/1/2011, Press TV, Teerã, e em português na redecastorphoto).

A declaração mais significativa até agora veio do presidente do Majlis [Parlamento] iraniano Ali Larijani, que anunciou o apoio do Irã aos levantes populares na Tunísia e no Egito, descrevendo-os como “uma fagulha” para outros movimentos no Oriente Médio: “A tendência evolucionário dessa revolução regional surpreendeu os ditadores e a revolução dos livres de coração” transcendeu os limites do nacionalismo.

Alto comandante militar, comandante do Corpo de Guardas da Revolução Islâmica, general Hossein Salami, ecoou os sentimentos: “O Egito é o coração do mundo árabe (...) e quaisquer mudanças ou revoluções sociopolíticas no Egito repetir-se-ão em muitos outros países islâmicos”. Disse que o Egito havia-se convertido em quintal de Israel e “ponto de apoio geoestratégico para as políticas dos EUA para a África”. Salami afirmou a afinidade ideológica do Irã com o levante do Egito, chamando-o “manifestação da Revolução Islâmica [de 1979] no Oriente Médio e no mundo islâmico”.

O establishment religioso está evidentemente em estado de graça. O líder interino das orações das sextas-feiras em Teerã, o aiatolá Ahmad Khatami, disse que os levantes significaram o nascimento de um “Oriente Médio Islâmico” baseado em princípios de religião e democracia.

Em declaração oficial, o ministério das Relações Exteriores do Irã disse que “As demonstrações no Egito, nação muçulmana, são movimento que visa à realização da justiça e a atender as exigências nacionais e ideológicas do povo egípcio". E aconselhou o governo de Hosni Mubarak a ouvir “a voz de sua nação muçulmana”, a aceitar o “despertar islâmico” e a render-se às exigências do povo.  

Para o ministro das Relações Exteriores Ali Akbar Salehi, “Hoje, o Egito e o povo egípcio servem-se da valiosa experiência de resistência da história contemporânea do Oriente Médio e começam a assumir o controle de seu próprio destino, exigindo o respeito que merecem pelo lugar que ocupam na Região.” Disse ao Majlis que “O que vemos no Oriente Médio e no norte da África são nações que são potências regionais, vigilantes, inspiradas pelo ensinamento islâmico, um despertar do islã, buscando libertar-se pelas forças populares, da dominação de poderes hegemônicos e alcançar independência real” (“O Irã monitora os acontecimentos regionais”, 30/1/2011, Press TV, Teerã, em português na redecastorphoto).

Teerã estima que o Oriente Médio chegou a uma encruzilhada histórica e que, afinal, a ira popular despertou, contra os regimes autocráticos. Trabalha agora para estabelecer uma ponte de afinidades islâmicas com os levantes populares, mas sempre atenta para não exortar os povos árabes à revolta. Teerã aproveitará a oportunidade que surgiu para construir elos com seus vizinhos árabes e, assim, começar a quebrar o isolamento regional imposto pelos EUA.

Toda a situação geral na Região caminha em direção que favorece o Irã. Um governo patrocinado por Teerã já começou a trabalhar em Bagdá. No Líbano, um governo controlado pelo Hezbollah está assumindo o poder democraticamente em Beirute. Os documentos publicados pela rede al-Jazeera sobre negociações secretas entre o presidente da Autoridade Palestina Mahmoud Abbas e os EUA e Israel, faz aumentar a representatividade do Hamás como voz da resistência. O Irã mantém sólidos laços com a Síria. E há hoje entendimento que jamais se viu antes entre o Irã e a Turquia.

Por outro lado, o desarranjo que se vê no campo palestino e a fluidez dos eventos no Cairo são fortes obstáculos que impedem Washington de retomar qualquer processo de paz em futuro próximo ou previsível – o que significa que os inúmeros fracassos do governo Obama no Oriente Médio continuam absolutamente expostos, além da desconfiança declarada que inspira à rua árabe.

Também opera a favor de Teerã a evidência de que é tarefa do governo Obama lidar com as mudanças cataclísmicas que varrem toda a Região. A questão nuclear iraniana sai do centro do palco, empurrada para as fileiras finais, ante as novas prioridades que se impõem a Washington. Washington, doravante, estará soterrada nas tarefas de “construção” do “Novo Oriente Médio”.

Enquanto isso, toda a estratégia dos EUA para isolar o Irã na Região, construindo uma falange de regimes árabes “pró-ocidente” plus Israel esvai-se água abaixo. E a influência do Irã como potência regional tem chances de alcançar novo patamar qualitativo.

A Israel... resta do blues do Oriente Médio
Em Telavive o nervosismo é extremo, em claro contraste com o júbilo que se ouve em Teerã. Os israelenses, sempre tão falantes ao desdenhar os vizinhos árabes, estão mudos. Apostam e fingem que creem que o governo Mubarak sobreviverá, de alguma forma, à tempestade. “Mubarak não é Zine el-Abidine Ben Ali, [presidente deposto da Tunísia]. Há enorme diferença. O regime egípcio tem raízes profundas, inclusive no establishment da Defesa. O governo é forte o bastante para superar as dificuldades atuais”.

Funcionário do governo de Israel disse à Agência France-Presse que “é interesse fundamental do Egito manter os laços privilegiados que o ligam ao ocidente, e manter a paz com Israel”. Pesquisador israelense tomou posição de assumido retrocesso: “Ainda que a Fraternidade Muçulmana, que sempre criticou os ‘laços ilegais’ entre Egito e Israel, assuma o poder, o exército e os serviços de segurança egípcios farão oposição total, com todo o poder que têm”.

Israel está obrigado a apostar todas as suas fichas no vice-presidente recém indicado, general Omar Suleiman (que foi chefe dos serviços de segurança e trabalhou sempre muito próximo do establishment de segurança israelense), que, na prática, está sendo entronizado sobre os cacos do regime de Mubarak.

Mas Telavive não se exporá a nenhum risco. Diplomatas israelenses no Cairo já foram discretamente evacuados por helicóptero e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu ordenou que ninguém, dentro do governo, comente os acontecimentos no Egito. Nas palavras de um importante político israelense, “Israel nada pode fazer quanto ao que está acontecendo lá. Só podemos manifestar nosso apoio a Mubarak e esperar que os tumultos se esvaziem”.

Israel não previu qualquer levante popular no Egito. Na terça-feira, quando já havia tumultos de rua no Cairo, o novo chefe da inteligência militar de Israel Aviv Kochavi, dizia em audiência na Comissão de Assuntos Exteriores e Defesa do Knesset(Parlamento) que nada ameaçava o governo Mubarak e que a Fraternidade Muçulmana não estava suficientemente organizada, de modo que ameaçasse o regime.

De todos, qual o pior cenário para Israel? Há medo, em Israel, sob vários formatos. Sem dúvida, o desafio estratégico é que pode acontecer de Israel ver-se em posição de agudo isolamento regional. Comentarista do jornal israelense Ha'aretz observou que “o poder cada vez mais fraco do governo de Mubarak deixa Israel em situação de extrema fragilidade estratégica. Sem Mubarak, já praticamente não restam amigos de Israel, no Oriente Médio; ano passado, foi o colapso da aliança entre Israel e Turquia. De agora em diante, será cada vez mais difícil, para Israel, depender de um governo egípcio cindido por lutas internas.”

O tratado de paz de 1979 com o Egito gerou, não apenas dividendo de paz para Israel (porque permitiu que Israel fizesse cortes em suas despesas desproporcionalmente altas com a Defesa), mas também criou condições para que as forças israelenses pudessem concentrar-se no chamado “front norte” – Síria, Líbano e Irã – e na defesa das colônias nos territórios palestinos ocupados. Incertezas no Egito imporão novo envio de forças para o sul, sobretudo para o Corredor Philadelphia entre Sinai e Gaza, que os resistentes palestinos usam para abastecimento.

À frente o mar parece agitado. Algum novo regime que suceda Mubarak cooperará com Israel tanto quanto Mubarak – apesar da “paz fria”? Se a Fraternidade Muçulmana chegar ao poder no Cairo, o tratado de paz entre Israel e Egito virará relíquia histórica?

E, se a agitação alastrar-se pela Cisjordânia e atingir Abbas? Suleiman oferece a Israel um “canal oculto” [ing. “,back channel”] para o Hamás. O fervor islâmico que cresce na região fortalece muitíssimo os dois “atores não estatais” que são a mais grave ameaça à segurança de Israel – o Hezbollah no Líbano e o Hamás. As mudanças políticas em Beirute fortalecem a mão do Hezbollah, da Síria e do Irã.

Além disso tudo, há a ameaça existencial de um surge iraniano. Os EUA estarão ocupados em tentar salvar a própria influência na Região. Pode acontecer de Washington ter de afastar os olhos, por um momento, de Teerã, para cuidar, dedicadamente de questões arroz-com-feijão – o canal de Suez, a transição política na Arábia Saudita, o petróleo, o Iraque, a retirada do Afeganistão e a obrigação histórica imperativa de tentar direcionar qualquer massivo levante popular na direção da democracia, afastando as massas de qualquer via islâmica radical.

Israel dedicou-se quase exclusivamente a atrair a atenção dos EUA para o processo de paz no Oriente Médio e para conter o programa nuclear iraniano. O plano estava dando certo, até que a crise política no Oriente Médio trouxe de volta a questão palestina para o centro da política regional. É o camelo dentro da tenda, que ninguém conseguirá não ver.

Pressão ocidental, sobretudo europeia, aumentará muito e, a menos que se dê atenção à crise fundamental entre palestinos e Israel, não haverá estabilidade durável no Oriente Médio, e os interesses ocidentais estarão gravemente ameaçados. Pode acontecer de Israel não poder prosseguir facilmente com suas políticas racistas e antiárabes.

O coração da questão é que os interesses de EUA e Israel divergem muito significativamente. Não há traço de “antiamericanismo” nos levantes, pelo menos até agora. Mas os regimes que vierem a estabelecer-se farão oposição séria ao apoio monolítico dos EUA a Israel, e não será questão de rotina. A principal preocupação de Israel será que as novas realidades no Oriente Médio talvez obriguem os EUA a reprogramar sua visão regional.

Não há, entre os encarregados de informar Obama sobre o fogo no Oriente Médio durante o fim-de-semana, nenhum especialista – Tom Donilon, Conselheiro de Segurança Nacional; Bill Daley, Chefe de Gabinete; Ben Rhodes, Conselheiro de Segurança Nacional; Tony Blinken, Conselheiro de Segurança Nacional do vice-presidente; Denis McDonough, secretário do Conselho de Segurança Nacional; John Brennan, assessor da presidência; e Robert Cardillo, diretor de Inteligência Nacional.

Como Helena Cobban escreveu em seu blog, é caso impressionante de “cegos guiando cego e cegos aconselhando cego” no Salão Oval (“Obama's know-nothings discuss Egypt”, Helena Cobban, 28/1/2011).

É hora de convocar os “Arabistas do Departamento de Estado”, até agora expulsos para o exílio das questões ideológicas, para substituir a equipe de conhecidos militantes pró-Israel que Obama nomeou como seus conselheiros.

Embaixador*M K Bhadrakumar foi diplomata de carreira; serviu no Ministério de Relações Exteriores da Índia. Ocupou postos diplomáticos em vários países, incluindo União  Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e Turquia.

O caso Battisti: toma que a batata quente é tua


Carta Aberta aos magistrados brasileiros

Paira sobre Cesare Battisti o mistério que cerca sua história. Existem muitas lacunas sobre os fatos. Somos tratados como duzentos milhões de pobres coitados que temos que nos curvar diante da vontade da Itália soberana.

O caso Battisti, sua história de refugiado começa quando é acolhido na França de Mitterrand, torna-se escritor e vive em paz. A França vira à direita, a Itália pedindo a extradição e Battisti é expulso “à la française” para atender àpressão Italiana: não extradita, mas estimula “a fuga”. Dá o passaporte e os meios para a fuga. Tudo providenciado pelo serviço secreto francês que monitora a viagem. O Brasil acolhe um perseguido, como sempre fez ao longo dos tempos. A França inicia o jogo da batata quente.

Battisti é preso como tantos outros italianos perseguidos que se refugiam aqui. Os outros foram libertados. Battisti vira questão de honra e termina refém de um conflito de poderes que termina numa salada surrealista: O STF vota pela expulsão, mas devolve ao Presidente da República o poder decisório.

O Presidente da República em seu último dia de governo toma a atitude que parecia justa e a mais adequada dentro das tradições brasileiras, a de conceder refúgio aosperseguidos por razões políticas. Prerrogativa constitucional e reconhecida pelo STF, que mesmo acreditando que Battisti deveria ser extraditado devolveu o poder de decisão ao Presidente da República. O jogo da batata quente continua.

O presidente do STF puxa de novo o poder decisório para o tribunal atendendo àpressão italiana. O suspense está no ar. O Presidente Italiano manda uma carta a Presidente Dilma Rousseff pedindo a extradição. A Presidente responde que a decisão está nas mãos do STF. A Presidente Dilma devolve a batata quente ao Supremo.

A Itália, berço do direito, hoje não tem sede de justiça, mas desejo de vingança e vem transformando Cesare Battisti na fera a abater.

A Itália que quer sevingar de sua própria história (sim, o caso Battisti é um caso de vingança histórica) não é a Itália de Dante, mas a Itália que durante o pós guerra afogou-se em escândalos e conluios entre a máfia e o fascismo que destruiu partidos e dirigentes políticos em escândalos de corrupção e que levou milhares de jovens italianos ao desespero político, encontrando como única porta de saída a resistência armada. E o Brasil vem sendo fustigado, intimidado e ameaçado como se fosse uma republiqueta centenária desafiando a milenar cultura italiana.

Para os que pretendem entender aqueles tempos tumultuados da história política da Itália, recomendo assistir a “Cadáveres Ilustres” (CADAVERI ECCELLENTI – 1976), do mestre Francesco Rossi baseado em obra homônima do escritor Leonardo Sciascia. O filme aborda a crise da democracia Italiana e trata do assassinato do secretário geral do Partido Comunista Italiano. A mais pura ficção. A crise do estado italiano está ali no romance e no filme denunciando a conspiração entre políticos, magistrados e militares  contra o Estado democrático.

Pouco tempo depois, a história, a de verdade, registrava a tragédia do sequestro e assassinato do democrata cristão Aldo Moro.

Este assassinato quase pôs a pique a democracia italiana. A direção da democracia cristã e a do Partido Comunista recusam-se em negociar com os ensandecidos das Brigadas Vermelhas, alegando a “defesa do Estado Democrático”,como se a vida de um homem valesse menos do que um princípio. Além da vida de Moro, o episódio custou muito caro à democracia italiana.

A podridão do ambiente político italiano culminou com a dissolução da própria Democracia Cristã e do Partido Comunista.

A crise italiana daquele período pós guerra e marcada por feridas ainda não cicatrizadas que desembarcam no governo Berlusconi o que exige uma reflexão maior e pede uma revisão histórica urgente. Não é esse nosso papel aqui. Estamos àbeira do julgamento que decidirá o futuro de um homem, o que já é muito.

Nós, os brasileiros, continuamos absolutamente desinformados sobre a história desse homem que terá seu destino determinado por um gesto nosso. E olha que ele já está preso por aqui desde 2007, tempo mais do que suficiente para mandar uma missão para investigar na Itália a verdadeira história de um julgamento cheio de lacunas e cantos escuros. Só quem desconhece a história italiana dos anos 70/80 é que compra sem reticências a versão do governo italiano.

A mídia comprou a versão italiana e publica acriticamente tudo que chega de lá. A última bazófia tornada pública foi a de que a Comunidade Européia aprovou com 86% dos votos uma moção recomendando ao Brasil que extraditasse Battisti. A realidade foi bem diferente: À sessão compareceram apenas 11% dos parlamentares, a imensa maioria, de italianos. E repercurte como se houvesse uma grande unanimidade em torno da extradição de Battisti.

Cesare Battisti foi acusado de cometer dois crimes a 400 kms de distância um do outro, com poucas horas de diferença, no mesmo dia. Ninguém foi questionar a veracidade da informação. Inexplicável mesmo é que ninguém se interesse em saber a versão de Pietro Mutti, o “capo” das Brigadas Vermelhas e principal acusador de Battisti. Onde está? O que faz hoje em dia? Os outros delatores são encontráveis, como Cavallina e o segundo principal delator se chama Sante Fatone e agora mora na Calábria. Talvez esse também possa ser encontrado.

Em sua cela na Papuda, penitenciária de Brasília, Cesare Battisti aguarda a decisão sobre seu destino que tanto poderá ser a liberdade, as ruas, o convivio com a família, amigos, a reintegração na sociedade ou a prisão até a eternidade, a liberdade ou a prisão perpétua (pena que não existe no Brasil). A realidade é bem mais dura do que a ficção, até porque Battisti não é um personagem de papel, mas de carne e osso, nervos e sentimentos.

Vejo Battisti em sua cela e viajo em tantos outros injustiçados da história: Giordano Bruno, Antonio José da Silva, o judeu, Tiradentes, o capitão Dreyfus, Sacco e Vanzetti, Ethel e Julius Rosenberg, Elise Ewert, Olga Benário.

Insisto: não estamos discutindo justiça mas vingança.

Silvio Tendler

Uma democracia de mentira

Multidão toma as ruas do Cairo

Publicado em 30/01/2011 por Mario Augusto Jakobskind

Enquanto sobe o tom da voz rouca nas ruas da Tunísia, do Egito, do Iêmen, da Argélia, do Marrocos e da Jordânia, em Israel, o país considerado pelo senso comum com uma democracia, nestes dias ocorreu a criação de uma comissão especial para investigar as atividades de cidadãos e grupos de esquerda.

No mais puro macarthismo, a extrema direita israelense, estimulada pelo Ministro do Exterior Avigdor Lieberman, uma figura nefasta e fascista, está vomitando ódio não apenas contra os palestinos, mas também contra israelenses de esquerda que, envergonhados, denunciam uma série de violações dos direitos humanos cometidas contra os palestinos. Os extremistas guiados por Lieberman acusam de “financiados por terroristas” os grupos progressistas israelenses que denunciam a ação do Exército nos territórios palestinos.

A mesma extrema direita israelense mais uma vez utilizou-se do Holocausto, lembrado no Dia 27 de janeiro, para aparecer como vítima. De fato são seis milhões de judeus assassinados pelo nazismo na II Guerra, juntamente com outros segmentos como ciganos, eslavos, comunistas, socialistas, homossexuais, seres humanos com problemas mentais etc.

Realmente, o Holocausto ser lembrado por extremistas como Lieberman, Benyamin Netanyahu e outros do gênero, é não apenas uma hipocrisia, como até mesmo ofensivo às próprias vítimas da bestialidade nazifascista do século passado. Exatamente porque, segundo denúncias dos próprios israelenses, estão vestindo a camisa do opressor de ontem, os nazistas. 

Quem imaginava que isso pertencia ao passado, engana-se. Lieberman e Netanyahu são exemplos concretos de que o ideário extremista continua vivo. O Ministro do Exterior de Israel, egresso da extinta União Soviética, pregou em várias ocasiões uma solução final contra os palestinos e manifesta claramente ódio aos árabes. .  

Quem veste a camisa do racismo não tem condições morais de falar em Holocausto, no caso de Lieberman & Netanyahu, aproveitando o sentimento de repulsa da humanidade pela barbárie da II Guerra Mundial para usá-la em proveito de uma ideologia que prega também o ódio e a exclusão do outro.  

Imbuída pelo sentimento de repulsa pelo que o governo Netanyahu continua a fazer com os palestinos, inclusive os residentes no território israelense, considerados pelas autoridades sionistas na prática como cidadãos de segunda classe, a esquerda israelense não se cala, exatamente para mostrar ao mundo que há repúdio interno em relação às atrocidades contra os palestinos.

A resposta foi dada pelo Parlamento, onde a direita tem maioria e, como afirma o jornalista israelense Gideon Levy, do jornal Haaretz, “o que este governo está fazendo ruborizaria até (Joseph) McCarthy”, o senador estadunidense que promoveu uma caça às bruxas nos anos 50.

Como temas desta natureza dificilmente são apresentados nos jornalões e telejornalões, não só do Brasil como pelo mundo afora, é necessário que a opinião pública seja informada do que está acontecendo em Israel e nos territórios palestinos, isso para evitar que o atual governo extremista de Netanyahu &Lieberman e outros do gênero continue levando adiante na prática a eliminação do outro, ou seja, do povo palestino. O jornal Brasil de Fato foi o único por estas bandas a informar a vergonhosa caça às bruxas. 

Por sinal, mais dois países da América Latina, o Paraguai e o Peru, acabaram de reconhecer o país Palestina com as fronteiras de 1967, somando-se ao Brasil, Argentina, Uruguai, Equador, Bolívia etc. Os respectivos governos, alguns não de esquerda, não se dobraram as pressões do lobby sionista.

Enquanto isso, depois dos tunisianos terem mandado para o lixo o ditador-ladrão Ben Ali, os egípcios estão dando o claro recado de que não suportam mais Hosny Mubarak e o seu regime corrupto e autoritário, que além de governar o país com mão de ferro há mais de 30 anos é o principal responsável pelo arrocho salarial, pobreza e desemprego, para não falar da subserviência aos Estados Unidos, que banca o governo com uma polpuda mesada de 1,3 bilhões de dólares anuais para se alinhar a Washington.

A voz rouca das ruas no Egito e Tunísia é clara: chega de ditaduras, de submissão ao Fundo Monetário Internacional, que em 2007, juntamente com o Fórum Econômico Mundial para a África, considerava o país do ex-ditador Ben Ali o mais competitivo do continente, mais inclusive do que a África do Sul. E tudo isso com a chancela dos sucessivos governos estadunidenses nos últimos 30 anos.

Embora os povos tenham perdido o medo da violenta repressão há também o perigo dos ditadores abandonarem o cargo, mas o regime continuar o mesmo, havendo apenas uma troca de seis por meia dúzia. Daí Mubarak nomear pela primeira vez em 32 anos um vice, o chefe da inteligência, Omar Suleiman. Pode ser até que esteja preparando o terreno para cair fora e deixar em seu lugar alguém que mantenha o mesmo esquema de dominação que levou os jovens a ir para as ruas protestar e pedir o fim do regime chancelado pelo Ocidente.

Quando este artigo estava sendo elaborado veio a informação do Cairo sobre a proibição do canal da Al Jazeera de atuar no Egito. Coisas de uma ditadura. Resta saber se as entidades internacionais que se consideram defensoras da liberdade de imprensa vão protestar. E o que dirão os governos ocidentais?