sábado, 30 de abril de 2011

Síria: A CIA e o domínio da manipulação dos fatos

(com a cumplicidade das agências de notícias)
O que se passa na Síria?

por Domenico Losurdo [*]

No momento em que centenas de sírios, civis e militares, acabam de tombar sob os tiros de franco atiradores financiados pelos saidiris e enquadrados pela CIA, os media ocidentais acusam o governo de Bachar el-Assad de disparar sobre a sua população e sobre as suas próprias forças policiais. Esta campanha de desinformação visa justificar uma possível intervenção militar ocidental. O filósofo Domenico Losurdo recorda que o método não é novo. Simplesmente, os novos meios de comunicação tornaram-no mais refinado. Doravante, a mentira não é veiculada apenas pela imprensa escrita e audiovisual, ela passa também pelo Facebook e o YouTube.

Desde há alguns dias, grupos misteriosos atiram sobre os manifestantes e, sobretudo, sobre os participantes nos funerais que se seguiram aos acontecimentos sangrentos. Quem compõe estes grupos? As autoridades sírias sustentam que se trata de provocadores, ligados essencialmente aos serviços secretos estrangeiros. No Ocidente, em contrapartida, mesmo à esquerda endossa-se sem qualquer dúvida a tese proclamada em primeiro lugar pela Casa Branca: aqueles que atiram são sempre e apenas agentes sírios vestidos à civil. Obama será a voz da verdade? A agência síria Sana relata a descoberta de “garrafas de plástico cheias de sangue” utilizado para produzir “vídeos amadores falsificados” de mortos e feridos junto aos manifestantes. Como ler esta informação, que retomo do artigo de L. Trombetta em La Stampa de 24 de Abril? Talvez as páginas que se seguem, tiradas de um ensaio que será publicado em breve, contribuam para lançar alguma luz em cima disso. Se alguém se mostrar espantado ou mesmo incrédulo com a leitura do conteúdo do meu texto, que não se esqueça de que as fontes que utilizo são quase exclusivamente “burguesas” (ocidentais e pró ocidentais). (Ver também adenda no fim do texto, NT).

“Amor e verdade”

Nestes últimos tempos, com as intervenções, sobretudo da secretária de Estado Hillary Clinton, a administração Obama não perde uma ocasião de celebrar a Internet, o Facebook, o Twitter como instrumentos de difusão da verdade e de promoção, indiretamente, da paz. Quantias consideráveis foram atribuídas por Washington à potencialização destes instrumentos e para torná-los invulneráveis à censura e ataques dos “tiranos”. Na realidade, para os novos media e para os mais tradicionais, a mesma regra se aplica: eles também podem ser instrumentos de manipulação e de incitamento do ódio e mesmo da guerra. O rádio foi sabiamente assim utilizado por Goebbels e pelo regime nazi.

Durante a Guerra Fria, mais do que um instrumento de propaganda, as transmissões de rádio constituíram uma arma para as duas partes empenhadas no conflito: a construção de “Psychological Warfare Workshop” eficaz é um dos primeiros deveres assinalados à CIA. O recurso à manipulação desempenha um papel essencial também no fim da Guerra Fria. Entretanto, ao lado da rádio, interveio a televisão. Em 17 de Novembro de 1989, a “revolução de veludo” triunfa em Praga, com uma palavra de ordem que se pretendia gandiana: “Amor e verdade”. Na realidade desempenhou um papel decisivo a difusão da fala notícia segundo a qual um estudante fora “morto brutalmente” pela polícia. É o que revela, satisfeito, vinte anos depois, “um jornalista e líder da dissidência, Jan Urban”, protagonista da manipulação: a sua “mentira” teve o mérito de despertar a indignação em massa e o afundamento de um regime já periclitante.

No fim de 1989, apesar de fortemente desacreditado, Nicolae Ceausescu ainda está no poder na Romênia. Como derrubá-lo? Os mass media ocidentais difundem maciçamente junto à população romena as informações e as imagens do “genocídio” perpetrado em Timisoara pela polícia de Ceausescu. O que se passou na realidade? Deixemos a palavra com um prestigioso filósofo (Giorgio Agamben), que nem sempre demonstra vigilância crítica em relação à ideologia dominante, mas que sintetizou aqui de modo magistral o caso que tratamos:

“Pela primeira vez na história da humanidade, cadáveres acabados de enterrar ou alinhados nas mesas das morgues foram desenterrados às pressas e torturados para simular diante das câmaras o genocídio que devia legitimar o novo regime. O que o mundo inteiro tinha diante dos olhos em directo como verdade nos écrans de televisão, era a absoluta não verdade. E apesar de a falsificação ser por vezes evidente, ela era autenticada de todos os modos como verdadeira pelo sistema mundial dos media, para que ficasse claro que o verdadeiro doravante não era senão um momento do movimento necessário do falso”. 


Dez anos depois, a técnica acima descrita é aplicada novamente, com um êxito renovado. Uma campanha martela o horror de que se tornou responsável o país (a Jugoslávia) cujo desmembramento foi programado e contra o qual já se está em vias de preparar a guerra humanitária:

“O massacre de Racak é atroz, com mutilações e cabeça cortadas. É um cenário ideal para despertar a indignação da opinião pública internacional. Alguma coisa parece estranha na matança. Os sérvios matam habitualmente sem efetuar mutilações [...] Como mostra a guerra da Bósnia, as denúncias de atrocidades nos corpos, sinais de tortura, decapitações, são uma arma de propaganda difusa [...] Talvez não tenham sido os sérvios, mas sim os guerrilheiros albaneses que mutilaram os corpos”. 


Naquela altura, os guerrilheiros do UCK não podiam ser suspeitos de tal infâmia: eram freedom fighters, combatentes da liberdade. Hoje, no Conselho da Europa, o líder do UCK e pai da pátria no Kosovo, Hashim Thaci, “é acusado de dirigir um clã político-criminal nascido na véspera da guerra” e implicado no tráfico não só de heroína como também de órgãos humanos. Eis o que acontecia sob a sua direção no decorrer da guerra: “Uma quinta em Rripe, na Albânia central, transformada pelos homens do UC em sala de operação, tendo como pacientes prisioneiros de guerra sérvios: um golpe na nuca, antes e extirpar os seus rins, com a cumplicidade de médicos estrangeiros” (presume-se que ocidentais). E assim vem à luz a realidade da “guerra humanitária” de 1999 contra a Jugoslávia; mas durante este tempo o seu desmembramento foi levado a cabo e no Kosovo instala-se e permanece uma enorme base militar estado-unidense.

Façamos outro salto atrás de vários anos. Uma revista francesa de geopolítica (Hérodote) salientou o papel essencial desempenhado no decorrer da "revolução das rosas", verificada na Geórgia no fim de 2003, pelas redes televisivas que estão nas mãos da oposição georgiana e pelas redes ocidentais: elas transmitem sem descontinuar a imagem (que a seguir revelou-se falsa) da villa que seria a prova da corrupção de Eduard Chevarnadze, o dirigente que se pretendia derrubar. Após a proclamação dos resultados eleitorais que dão a vitória a Chevarnadze e que são declarados fraudulentos pela oposição, esta decide organizar uma marcha sobre Tíflis, que deveria marcar “a chegada simbólica, mesmo pacífica, à capital, de todo um país em cólera”. Apesar de convocados por todos os cantos do país com grandes reforços de meios propagandísticos e financeiros, nesse dia afluem à marcha entre 5 000 e 10 000 pessoas: “isto não é nada para a Geórgia”! Mas ainda assim, graças a uma mise en scène refinada e de grande profissionalismo, a cadeia de televisão mais difundida no país chega a comunicar uma mensagem inteiramente diferente: “A imagem está lá, poderosa, a de um povo inteiro que segue o seu futuro presidente”. Doravante as autoridades políticas estão deslegitimadas, o país está desorientado e aturdido e a oposição mais arrogante do que nunca, tanto mais que os media internacionais e as chancelarias ocidentais encorajam-no e protegem-no. O golpe de Estado está maduro, ele vai levar ao poder Mikhail Saakashvili, que estudou nos EUA, fala um inglês perfeito e está em condições de compreender rapidamente as ordens dos seus superiores.

A Internet como instrumento de liberdade

Vejamos agora os novos media, particularmente queridos à senhora Clinton e à administração Obama. Durante o Verão de 2009 podia-se ler num diário italiano reputado:

“Desde há alguns dias, no Twitter, circula uma imagem de proveniência incerta [...] Diante de nós, um fotograma de um valor profundamente simbólico: uma página do nosso presente. Uma mulher com o véu negro, que usa uma t-shirt verdade sobre jeans: extremo Oriente e extremo Ocidente juntos. Ela está só, de pé. Tem o braço direito levantado e o punho fechado. Face a ela, imponente, a boca de um SUV, do teto do qual emerge, hierático, Mahmoud Ahmadinejad. Atrás, os guarda-costas. O jogo dos gestos impressiona: provocação desesperada da parte da mulher; mística da parte do presidente iraniano”. 


Trata-se de “uma fotomontagem”, que parece “verosímil”, para chegar mais eficazmente a “condicionar ideias, crenças”. As manipulações abundam. No fim do mês de Junho de 2009, os novos media no Irã e todos os meios de informação ocidentais difundem a imagem de uma bela jovem atingida por uma bala: "Ela começa a sangrar, perde consciência. Nos segundos que se seguem ou pouco depois, ela está morta. Ninguém pode dizer se foi atingido no fogo cruzado ou se foi atingida de modo deliberado". Mas a busca da verdade é a última coisa em que se pensa: seria de qualquer modo uma perda de tempo e poderia mesmo revelar-se contraproducente. O essencial está alhures: “no presente, a revolução tem um nome: Neda”. Pode-se então difundir a mensagem desejada: “Neda inocente contra Ahmadinejad”, ou então, “uma jovem corajosa contra um regime vil”. E a mensagem verifica-se irresistível: “É impossível olhar na Internet de modo frio e objetivo o vídeo de Neda Soltani, a breve sequência em que o pai da jovem e um médico tentam salvar a vida da jovem iraniana de vinte e seis anos”. Como na fotomontagem, também no caso da imagem de Neda estamos na presença de uma manipulação refinada, atentamente estudada e calibrada em todos os seus pormenores (gráficos, políticos e psicológicos) com o objetivo de desacreditar e tornar o mais odiosa possível a direção iraniana (Ver adenda no fim do texto, NT)

E chegamos assim ao “caso líbio”. Uma revista italiana de geopolítica falou a propósito disso da "utilização estratégica do falso", como confirma em primeiro lugar o “desconcertante caso das falsa fossas comuns” (e de outros pormenores sobre os quais chamei a atenção). A técnica é aquela que se utiliza há décadas, mas que na atualidade, com o advento dos novos media, adquire uma eficiência terrível: “A luta é primeiro representada como um duelo entre o poderosos e o fraco indefeso, e rapidamente transfigurada a seguir numa oposição frontal entre o Bem e o Mal absolutos”. Nestas circunstâncias, longe de ser um instrumento de liberdade, os novos media produzem o resultado oposto. Estamos na presença de uma técnica de manipulação, que “restringe fortemente a liberdade de escolha dos espectadores”; “os espaços para uma análise racional são comprimidos ao máximo, em particular explorando o efeito emotivo da sucessão rápida das imagens”.

E assim reencontra-se para os novos media a regra já constatada para o rádio e a televisão: os instrumentos, ou potenciais instrumentos, de liberdade e de emancipação (intelectual e política) podem inverter-se e muitas vezes invertem-se hoje no seu contrário. Não é difícil prever que a representação maniqueísta do conflito na Líbia não resistirá muito tempo; mas Obama e seus aliados esperam no intervalo atingir os seus objetivos, que não são verdadeiramente humanitários, mesmo se a novilíngua teima de defini-los como tais.

Espontaneidade da Internet

Mas retornemos à fotomontagem que mostra uma dissidente iraniana a desafiar o presidente do seu país. O autor do artigo que cito não se interroga sobre os artesãos de uma manifestação tão refinada. Vou tentar remediar esta lacuna. No fim dos anos 90 já se podia ler no International Herald Tribune: “As novas tecnologias mudaram a política internacional”; aqueles que estiverem em condições de controlá-las vêem aumentar desmedidamente seu poder e sua capacidade de desestabilização dos países mais fracos e tecnologicamente menos avançados.

Estamos na presença de um novo capítulo da guerra psicológica. Também neste domínio os EUA estão decisivamente na vanguarda, tendo no seu ativo décadas de investigação e de experimentações. Há alguns anos Rebecca Lemov, antropóloga da Universidade do Estado de Washington, publicou um livro que “ilustra as tentativas desumanas da CIA e de alguns dos maiores psiquiatras de “destruir e reconstruir” a psique dos pacientes nos anos 50”. Podemos então compreender um episódio que se verificou neste mesmo período. Em 16 de Agosto de 1951, fenômenos estranhos e inquietantes vieram perturbar Pont-Saint-Esprit, “uma aldeia tranquila e pitoresca” situada “no Sudeste da França”. Sim, “a aldeia foi sacudida por um misterioso vento de loucura coletiva. Pelo menos cinco pessoas morreram, dezenas acabaram no asilo, centenas deram sinais de delírio e de alucinações [...] Muitos acabaram no hospital com a camisa de força”. O mistério, que durante longos anos cercou este ataque de “loucura coletiva”, agora está desvendado: tratou-se de uma “experimentação efetuada pela CIA, com a Special Operation Division (SOD), a unidade secreta do Exército dos EUA de Fort Detrick, Maryland”; os agentes da CIA “contaminaram com LSD as baguettes vendidas nas padarias da aldeia”, provocando os resultados que vimos acima. Estamos no princípio da Guerra Fria: certamente os Estados Unidos eram aliados da França, mas é justamente por isso que esta se prestava facilmente às experimentações de guerra psicológica que tinham como objetivo o “campo socialista” (e a revolução anti-colonial), mas que dificilmente podiam ser efetuadas nos países para além da cortina de ferro.

Coloquemos então uma pergunta: a excitação e o incitamento das massas não podem ser produzidos senão pela via farmacológica? Com o advento e a generalização da Internet, Facebook, Twitter, emergiu uma nova arma, susceptível de modificar profundamente as relações de força no plano internacional. Isto não é mais um segredo, para ninguém. Nos nossos dias, nos EUA, um rei da sátira televisiva como Jon Stewart exclama: “Mas porque enviamos exército se é tão fácil abater as ditaduras via Internet quanto comprar um par de sapatos?” Por sua vez, numa revista próxima do Departamento de Estado, um investigador chama a atenção sobre “como é difícil militarizar” (to weaponize) os novos media para objetivos a curto prazo e ligados a um país determinado; mais vale perseguir objetivos de mais ampla envergadura. As ênfases podem variar, mas o significado militar das novas tecnologias é em todos os casos explicitamente sublinhado e reivindicado.

Mas a Internet não é a própria expressão da espontaneidade individual? Só os mais ingênuos (e os menos escrupulosos) argumentam assim, Na realidade – reconhece Douglas Paal, ex-colaborador de Reagan e de Bush sénior – a Internet é atualmente “gerida por uma ONG que é, de fato, uma emanação do Departamento de Comércio dos EUA”. Trata-se só de comércio? Um diário de Pequim relata um fato amplamente esquecido: quando em 1992 a China pede pela primeira vez para ser conectada à Internet, seu pedido foi rejeitado devido ao perigo de que o grande país asiático pudesse assim “procurar informações sobre o Ocidente”. Agora, ao contrário, Hillary Clinton reivindica a “absoluta liberdade” de Internet como valor universal ao qual não se pode renunciar; e contudo – comenta o diário chinês – “o egoísmo dos Estados Unidos não mudou”.

Talvez não se trate apenas de comércio. Quanto a isso, o semanário alemão Die Zeit pede esclarecimentos a James Bamford, um dos maiores peritos em matéria de serviços secretos estadunidenses: “Os chineses também temem que firmas americanas como a Google sejam em última análise ferramentas dos serviços secretos americanos no território chinês. Será uma atitude paranóica?” “Nada disso”, responde ele imediatamente. Ao contrário – acrescenta o perito – “organizações e instituições estrangeiras [também] são infiltradas” pelos serviços secretos estadunidenses, os quais estão de todos os modos em condições de interceptar as comunicações telefônicas em todos os cantos do planeta e devem ser considerado como “os maiores hackers do mundo”. Doravante – afirmam ainda no Die Zeit dois jornalistas alemães – não há a mínima dúvida quanto a isso:

“Os grandes grupos da Internet tornaram-se uma ferramenta da geopolítica dos EUA. Antes, havia a necessidade de laboriosas operações secretas para apoiar movimentos políticos em países longínquos. Hoje basta frequentemente um pouco de técnica de comunicação, operada a partir do Ocidente [...] O serviço secreto tecnológico dos EUA, a National Security Agency, está em vias de montar uma organização completamente nova para as guerras na Internet”. 


Convém, portanto, reler à luz de tudo isto alguns acontecimentos recentes de explicação não muito fácil. Em Julho de 2009 incidentes sangrentos verificaram-se em Urumqi e no Xinjiang, a região da China habitada, sobretudo por uigures. Será a discriminação e a opressão contra minorias étnicas e religiosas a explicação? Uma abordagem deste tipo não parece muito plausível, a julgar pelo menos com o que informa de Pequim o correspondente de La Stampa:

“Numerosos hans de Urumqi queixavam-se dos privilégios de que desfrutavam o uigures. Estes, de fato, enquanto minoria nacional muçulmana, têm em igual nível condições de trabalho e de vida bem melhores que os seus colegas hans. Um uigur, no escritório, tem autorização para suspender o seu trabalho várias vezes por dia para cumprir as cinco orações muçulmanas tradicionais da jornada [...] Além disso podem não trabalhar na sexta-feira, dia feriado muçulmano. Em teoria eles deveriam recuperar o domingo. Mas no domingo os escritórios estão de facto desertos [...] Outro ponto doloroso para os hans, submetidos à dura política que impõe o filho único por família, é o fato de que os uigures podem ter dois ou três filhos. Como muçulmanos, além disso, eles têm reembolsos acrescidos no seu salário pois como não podem comer porco devem recorrer à carne de carneiro que é mais cara”. 


Parecem, portanto, pelo menos unilaterais estas acusações do Ocidente contra o governo de Pequim por querer apagar a identidade nacional e religiosa dos uigures. E então?

Vamos refletir sobre a dinâmica destes incidentes. Numa vila litorânea da China onde, apesar das diferentes tradições culturais e religiosas pré-existentes, hans e uigures trabalham lado a lado, difunde-se de repente o rumor de que uma jovem han foi violada por operários uigures; daí resultam incidentes no decorrer dos quais dois uigures perdem a vida. O rumor que provocou esta tragédia é falso, mas então difunde-se um segundo rumor mais forte e ainda mais funesto: a Internet divulga na rede a notícia de que na cidade costeira da China centenas de uigures teriam perdido a vida, massacrados pelos hans sob a indiferença e mesmo sob o olhar complacente da polícia. Resultado: tumultos étnicos no Xinjiang, que provocam a morte de quase 200 pessoas, desta vez quase todos hans.

Estaremos na presença de uma complicação infeliz e fortuita de circunstâncias ou, em alternativa, da difusão de rumores falsos e tendenciosos visando o resultado que efetivamente se verificou a seguir? Estamos numa situação em que a partir de agora se verificar impossível distinguir a verdade da manipulação. Uma sociedade estadunidense realizou “programas que permitiriam a um sujeito empenhado numa campanha de desinformação adotar simultaneamente até 70 identidades (perfis de redes sociais, contas em fóruns, etc.) gerindo-os paralelamente: tudo isso sem que se possa descobrir quem puxa os fios desta marionete virtual”. Quem recorreu a estes programas? Não é difícil adivinhar. O diário citado aqui, não suspeito de antiamericanismo, precisa que a sociedade em causa “fornece serviços a diversas agências governamentais estadunidenses, como a CIA e o Ministério da Defesa”. A manipulação de massa celebra o seu triunfo enquanto a linguagem do Império e da novilíngua fazem-se, na boca de Obama, mais doces e suaves do que nunca.

Volta então à memória a “experimentação efetuada pela CIA” durante o Verão de 1951, que produziu “um misterioso vendaval de loucura coletiva” na “aldeia pitoresca e tranqüila” de Pont-Saint-Esprit. E eis-nos de novo obrigados a nos colocarmos a pergunta inicial: a “loucura coletiva” pode ser produzida só por via farmacológica ou pode hoje ser o resultado do recurso, também, às “novas tecnologias” da comunicação de massa?

Compreendem-se então os financiamentos de Hillary Clinton e da administração Obama aos novos media. Vimos que a realidade das “guerras na Internet” a partir de agora é reconhecida mesmo por órgãos reputados da imprensa ocidental; salvo que na linguagem do Império e na novilíngua a promoção das "guerras na Internet" torna-se a promoção da liberdade, da democracia e da paz.

Os alvos destas operações não permanecem inertes: como em toda guerra, os fracos procuram reduzir a sua desvantagem aprendendo com os mais fortes. E eis que estes últimos gritam escandalizados: “No Líbano aqueles que melhor dominam os novos media e as redes sociais não são as forças políticas pró ocidentais que apoiam o governo de Saad Hariri, mas sim os “Hezbollah”. Esta observação deixa fugir um suspiro: ah, como seria belo se, assim como aconteceu com a bomba atômica e as armas (propriamente ditas) mais refinadas, também para as “novas tecnologias” e as novas armas de informação e desinformação em massa, aqueles que detêm o monopólio fossem o país que inflige um interminável martírio ao povo palestino e pudessem continuar a exercer no Médio Oriente uma ditadura terrorista! O fato é – lamenta-se Moises Naïm, diretor da Foreign Policy – que os EUA, Israel e o Ocidente já não enfrentam mais os “ciber-idiotas de outrora”. Estes “contra-atacam com as mesmas armas, fazem contra-informação, envenenam os poços”: uma verdadeira tragédia do ponto de vista dos presumidos campeões do “pluralismo”. Na linguagem do Império e na novilíngua, a tímida tentativa de criar um espaço alternativo ao que é gerido e hegemonizado pela superpotência solitária torna-se um “envenenamento dos poços”.

Comentários do Réseau Voltaire

 

Sobre o Facebook na Síria

Desde o princípio das manifestações em Deraa, foi aberta uma página no Facebook com o título “Revolução síria 2011”: slogan publicitário para verdadeiros revolucionários: se não se conseguir em 2011 deixa-se cair? Durante a jornada, esta página contava com 80 mil amigos, quase todos das contas Facebook criadas no mesmo dia. Isto é impossível salvo se os “amigos” forem contas virtuais criadas por software.

A propósito do caso Neda no Irã

Se se revê o vídeo da morte da jovem Neda passando-o em câmara lenta, constata-se que ao cair a jovem tem o reflexo de amortecer a sua queda com o braço. Ora, toda pessoa atingida por bala – ainda mais no peito – perde os seus reflexos. O corpo deveria cair como uma massa. Mas não é o caso. É impossível que a jovem tenha sido ferida por bala naquele momento. Alguns segundos mais tarde, o vídeo mostra o rosto da jovem. Ele está bem. Ela passa a mão sobre o seu rosto e é então recoberto de sangue. O aumento da mão mostra que ela dissimula um objeto na sua palma e que ela espalha, ela própria, o sangue sobre o seu rosto. A jovem é então levada pelos seus amigos ao hospital. Ela morre durante o transporte. Chegada ao hospital constata-se que a morte se deveu a uma bala em pleno peito. Esta não pode ter sido atirada senão pelos seus “amigos” durante o seu transporte.

Referências bibliográficas

  1. Giorgio Agamben 1996, Mezzi senza fine. Note sulla politica, Bollati Boringhieri, Torino.
  2. James Bamford (interview) 2010, quot Passen Sie auf, was Sie tippen quot, par Thomas Fischermann, in Die Zeit, 18 février, pp. 20-21.
  3. Ennio Caretto 2006, La Cia riprogrammò le menti dei reduci, in Corriere della Sera, 12 février, p. 14.
  4. Germano Dottori 2011, Disinformacija. L'uso strategico del falso nel caso libico, in Limes. Rivista italiana di geopolitica, n. 1, pp. 43-49.
  5. Alessandra Farkas 2010 quot La Cia drogò il pane dei francesi quot. Svelato il mistero delle baguette che fecero ammattire un paese nel '51, in Corriere della Sera, 13 mars, p. 25.
  6. Thomas Fischermann, Götz Hamann 2010, Angriff aus dem Cyberspace, in Die Zeit, 18 février, pp. 19-21.
  7. Carlo Formenti 2011, La quot disinformazia quot ai tempi del Web. Identità multiple per depistare, in Corriere della Sera, 28 février, p. 38.
  8. Massimo Gaggi 2010, Un'illusione la democrazia via web. Estremisti e despoti sfruttano Internet, in Corriere della Sera, 20 mars, p. 21.
  9. Régis Genté 2008, Des révolutions médiatiques, in Hérodote, revue de géographie et de géopolitique, 2° trimestre, pp. 37-68.
  10. Mara Gergolet 2010, L'Europa : quot Traffico d'organi in Kosovo quot, in Corriere della Sera, 16 décembre, p. 18.
  11. Global Times 2011, The internet belongs to all, not just the US, in Global Times, 17 février.
  12. Andrian Kreye 2009, Grüne Schleifen für Neda, in Süddeutsche Zeitung, 24 juin, p. 11.
  13. Domenico Losurdo 2010, La non-violenza. Una storia fuori dal mito, Laterza, Roma-Bari.
  14. Roberto Morozzo Della Rocca 1999, La via verso la guerra, in Supplément au n. 1 (Quaderni Speciali) de Limes. Rivista Italiana di Geopolitica, pp. 11-26.
  15. Barack Obama, David Cameron, Nicolas Sarkozy, Libya's pathway to peace, in International Herald Tribune, 15 avril, p. 7.
  16. Douglas Paal (interview à) 2010, quot Questo è l'inizio di uno scontro tra due civiltà quot, par Maurizio Molinari, in La Stampa, 23 janvier, p. 7.
  17. Nicolas Pelham 2011, The Battle for Libya, in The New Review of Books, 7 avril, pp. 77-79.
  18. Guido Ruotolo 2011, Gheddafi : ingannati dagli amici occidentali, in La Stampa, 1er mars, p. 6.
  19. David E. Sanger 2011, As war in Libya drags on, U.S. goals become harder, in International Herald Tribune, 12 avril, pp. 1 et 8.
  20. Clay Shirky 2011, The Political Power of Social Media, in Foreign Affairs, janvier-février 2011, pp. 28-41.
  21. Bob Schmitt 1997, The Interrnet and International Politics, in International Herald Tribune, 2 avril, p. 7.
  22. Francesco Sisci 2009, Perché uno han non sposerà mai una uigura, in La Stampa, 8 juillet, p. 17.
  23. Evan Thomas 1995, The Very Best Men. Four Who Dared. The Early Years of the CIA, Simon & Schuster, New York
  24. Vincenzo Trione 2009, Quella verosimile manipolazione contro l'arroganza di Ahmadinejad, in Corriere della Sera, 2 juillet, p. 12.

Ver também:


[*] Professor de história da filosofia na Universidade de Urbino (Itália). Dirige desde 1988 a Internationale Gesellschaft Hegel-Marx für dialektisches Denken, e é membro fundador da Associazione Marx XXIesimo secolo. Última obra traduzida para o francês: Staline: histoire et critique d'une légende noire (Aden, 2011).

O artigo original, em francês,  encontra-se em: Que se passe a Syrie
 
Esta tradução foi realizada por Resistir.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Capitalismo e luta de classes

James Petras


A luta de classes continua a desempenhar um papel central no processo da acumulação capitalista, embora assuma formas diferentes consoantes aos contextos socioeconômicos. Para analisar a situação da luta de classes é necessário especificar conceitos chave relacionados com (a) as diversas condições e os setores dominantes do capital na economia global, (b) a natureza da luta de classes, (c) os principais protagonistas das lutas de classes, (d) o caráter das exigências e (e) as lutas de massas.

A acumulação capitalista desenrola-se num padrão muito desigual com consequências importantes para a natureza e a intensidade da luta de classes. Além disso, as reações particulares dos trabalhadores e, principalmente, do estado capitalista à situação geral da economia moldam o grau em que a luta de classes se intensifica e definem qual dos dois principais “polos” (capital ou trabalho) assume a ofensiva.

Esclarecimento de conceitos

Ao analisar o capitalismo contemporâneo, a distinção mais flagrante é entre três condições radicalmente diferentes que o capitalismo enfrenta. Dizem respeito à experiência dos países quanto a (a) alto desenvolvimento, (b) estagnação, (c) crises profundas.

Os países capitalistas de alto crescimento dividem-se acentuadamente entre (a) os que têm um alto crescimento do consumo, são grandes exportadores de produtos agro-minerais-energia, na sua maioria situados em África e na América Latina, (b) e os que são exportadores de produtos fabricados – situados principalmente na Ásia (China, Índia, Coreia do Sul).

As economias em crise podem subdividir-se em três grupos.

(a) Economias em recuperação rápida, que incluem a Alemanha e os países nórdicos, e que, depois de se afundarem num crescimento negativo, alargaram as suas exportações industriais e estão crescendo rapidamente desde 2010.

(b) Economias em recuperação lenta ou em estagnação, que incluem os EUA, a Grã-Bretanha, a França e a Itália, e que bateram no fundo, recuperaram lucros, em especial no setor financeiro, mas têm feito pouco ou nenhum progresso na redução do desemprego, na expansão das manufaturas e no crescimento em geral.

(c) Economias em crise prolongada e profunda , que incluem Portugal, Espanha, Grécia, os países bálticos e balcânicos, que estão na bancarrota, com um desemprego crescente entre 15% a 20% e um crescimento negativo. Têm um pesado fardo de endividamento e estão implementando fortes programas de austeridade destinados a prolongar a sua depressão econômica durante os próximos anos.

Assim como há padrões desiguais no desenvolvimento capitalista, o mesmo acontece no que se refere à luta de classes. Há vários conceitos-chave que é preciso ter em consideração na análise da luta de classes.

Em primeiro lugar, há a distinção entre luta de “classes” e luta de “massas”. Na América Latina há muitas situações de lutas de trabalhadores polivalentes, de camponeses ou do setor público, lideradas por organizações ligadas a classes. Por vezes estes movimentos baseados em classes transformam-se em “lutas de massas” e incorporam grupos heterogêneos (vendedores ambulantes, trabalhadores independentes, etc.). As revoltas árabes contemporâneas são, sobretudo, lutas de massas, geralmente sem liderança ou organizações de classe, ou em alguns casos lideradas pela “juventude” ou por “organizações religiosas”.

Em segundo lugar, há a distinção entre lutas de classe “ofensivas” e “defensivas”, em que as organizações de classe lutam para aumentar os seus direitos sociais e aumentar salários ou lutam para preservar ou limitar a perda de salários e dos níveis de vida.

A luta de classe é uma proposta com dois sentidos: enquanto os trabalhadores e outras classes exploradas lutam a partir de baixo, as classes dirigentes e os seus estados empenham-se na luta de classes a partir de cima para aumentar os seus lucros, produtividade e poder.

A luta de classe assume formas diversas. A maior parte das lutas de classe de hoje é sobre “questões econômicas”, incluindo uma fatia maior do rendimento nacional. Há meia dúzia de anos, em toda a América Latina, tal como hoje nos países árabes, a luta de classes ou de massas era/é, principalmente, política, uma luta para derrubar regimes neoliberais opressivos e regimes repressivos.

Com estes conceitos esclarecidos, podemos agora analisar a relação entre países e regiões com diversos graus de crises ou de crescimento e a sua relação com os diversos graus e tipos de luta de classes.

Desenvolvimento desigual e luta de classes

Os países que experimentam um alto crescimento, quer na Ásia com base na produção, quer na América Latina com base na explosão das exportações agro-minerais, enfrentam uma crescente luta de classes econômica ofensiva por uma fatia maior do bolo econômico em crescimento. Na década passada, na China, sob a pressão das bases, os salários ultrapassaram um aumento de 10%, e nalgumas regiões de 20% [1], enquanto que na América Latina os trabalhadores da Bolívia e doutros países exigem mais de 10% [2]. Em grande parte, o alto crescimento é acompanhado pela inflação [3] que corrói os aumentos nominais oferecidos pelo estado e pelos empregadores. Especialmente provocadores são as fortes subidas nos preços dos alimentos básicos, da energia e dos transportes que afetam a vida quotidiana dos trabalhadores.

Entre os sinais mais promissores do avanço da luta de classes estão as conquistas socioeconômicas reais e substanciais conseguidas pelos trabalhadores na década passada na América Latina. Na Argentina o desemprego diminuiu de mais de 20% para menos de 7%, os salários reais aumentaram mais de 15%, o salário mínimo, as pensões e a cobertura médica aumentaram substancialmente e a filiação sindical aumentou. No Brasil ocorreram processos semelhantes, embora numa escala menor: o desemprego passou de 10% para 6,5% (Março de 2011), o salário mínimo aumentou mais de 50% nos últimos 8 anos e várias centenas de terrenos foram ocupados e expropriados sob a ação direta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Na América Latina, embora a política social revolucionária tenha diminuído desde a primeira década de 2000, a luta de classes econômica tem tido êxitos na obtenção de reformas substanciais que melhoram a vida da classe trabalhadora e impõem algumas restrições à exploração desenfreada da força de trabalho pelo neoliberalismo, em profundo contraste com o que está se passando na Inglaterra-América e na Europa do Sul.

Nos países imperialistas “desenvolvidos” em estagnação, o estado tem vindo a atirar o custo total da “recuperação” sobre os ombros dos trabalhadores e dos funcionários públicos, reduzindo o emprego, os salários e os serviços sociais, enquanto enriquece os banqueiros e a elite empresarial. Os EUA, a Inglaterra e a França têm assistido a uma aguda ofensiva de classe a partir de cima que, perante a fraca oposição de um aparelho sindical ancilosadamente burocratizado, tem derrubado muitas das conquistas sociais anteriores dos trabalhadores [4]. Na essência, as lutas dos trabalhadores são defensivas, na tentativa de limitar o recuo, mas falta-lhes a organização política de classe para contra-atacar as medidas orçamentárias reacionárias que cortam os programas sociais e reduzem os impostos aos ricos, aprofundando as desigualdades de classes.

As lutas de classes mais intensas ocorreram nos países em que se verificam as crises econômicas mais profundas, nomeadamente, na Grécia, na Espanha, na Irlanda e em Portugal. Nestes países, a classe dirigente recuou meio século de conquistas sociais e de salários no decurso de três anos a fim de satisfazer os critérios dos banqueiros ocidentais e do FMI. A ofensiva de classe a partir de cima, liderada pelo Estado, tem enfrentado uma série de greves gerais, numerosas manifestações e montes de protestos, mas tudo em vão [5] . A elite industrial-estatal, liderada na maior parte dos casos pelos políticos sociais-democratas, privatizou empresas públicas, cortaram milhões de empregos públicos, elevaram os níveis de desemprego a níveis históricos (Espanha 20%, Grécia 14%, Portugal e Irlanda 13%) e canalizaram dezenas de milhares de milhões para pagamentos da dívida [6].

As crises têm sido aproveitadas pela classe dominante como arma para reduzir os custos da mão-de-obra, para transferir receitas para os 5% do topo da hierarquia de classes e para aumentar a produtividade, sem reativar a economia no seu todo. O PIB continua “negativo” para o futuro previsível, enquanto que a austeridade corrói a procura interna, e os pagamentos da dívida impedem o investimento local de reativar a economia.

As crises políticas dos regimes clientes árabes, rentistas, autocráticos e corruptos, manifestam-se nos movimentos democráticos populares de massas – na ofensiva – que derrubaram os regimes no Egito e na Tunísia, para começar, e desafiam o aparelho de estado pró-imperialista [7]. No Egito e na Tunísia, foram derrubadas as autocracias pró-imperialistas, mas ainda não estão no poder regimes democráticos populares que correspondam aos novos protagonistas de massas da alteração política. No resto do mundo árabe, surgiram revoltas de massas no Iêmen, no Bahrain, na Argélia, na Jordânia, na Síria e noutros locais, contra autocracias imperialistas armadas, levantando o espectro de alterações democráticas e socioeconômicas.

As potências imperiais, EUA e UE, inicialmente apanhadas desprevenidas, acabaram por desencadear um contra-ataque, intervindo na Líbia, apoiando a junta militar no Egito e tentando impor “novos” regimes colaboracionistas para bloquear uma transição democrática [8]. A luta de massas, influenciada pelas forças islâmicas e seculares, tem um claro programa de rejeição da atual situação política, mas na falta de uma liderança de classe, não tem sido capaz de apresentar uma estrutura política e econômica alternativa para além de vagas noções de “democracia” [9].

Em resumo, o crescimento acompanhado de um rápido aumento no rendimento nacional e de uma inflação crescente, tem sido muito mais mobilizador para a luta de classes ofensiva a partir de baixo do que as “crises” ou a “estagnação” que, quando muito, são acompanhadas por lutas 'defensivas' ou de retaguarda. Em parte, a teoria da “privação relativa” parece adequada à ideia duma crescente luta de classes, mas esse tipo de luta é, principalmente, “economicista” e visa menos o estado propriamente dito. Além disso, os métodos de luta são normalmente greves por salários mais altos. Isto é, sobretudo, evidente na Argentina, no Brasil, no Chile e no Peru, onde ocorreram intensas lutas por exigências economicistas diminutas. A exceção são as lutas da comunidade índia no Peru e no Equador contra as companhias mineiras estatais e estrangeiras que exploram e poluem as suas terras, o ar e a água.

No entanto, há várias advertências a fazer. A classe trabalhadora na Bolívia, que goza de um dinâmico e forte crescimento nas exportações agro-minerais, lançou uma greve geral de dez dias (6 a 16 de Abril de 2011) pelos salários [10]. A prolongada greve no tempo acabou por levantar dúvidas “políticas” sobre a legitimidade do regime de Morales em alguns setores. Isto se deve, em parte, ao fato de que os aumentos de salários são fixados pelo governo. Segundo a principal organização de trabalhadores (COB), os aumentos ditados pelo regime ficaram abaixo do aumento dos preços da cesta alimentar básica das famílias. Daí que, o que começou como uma luta econômica, acabou por se politizar. Da mesma forma, no caso do Peru, com uma dinâmica economia de exportação de minério, o regime neoliberal de Garcia enfrentou agudos confrontos econômicos e ecológicos com os mineiros e as comunidades índias. Na campanha eleitoral presidencial de 2011, a luta tornou-se fortemente política, com uma pluralidade de eleitores trabalhadores e camponeses a apoiar Humala, o candidato centro-esquerda [11]. Em países de alto crescimento, que dependem de grandes companhias mineiras de propriedade estrangeira e possuem substanciais comunidades índias, o conflito de classe alia-se a exigências ecológicas, de classe, nacionais e etnocomunitárias.

Em outras palavras, a distinção traçada acima entre lutas de classes ofensivas/defensivas e econômicas/políticas é fluida, está sujeita a alterações, conforme muda a luta e o seu contexto.

A terrível agudização da luta de classes numa China em forte crescimento reflete a crescente falta de trabalho nas regiões costeiras, os enormes lucros duma nova classe de multimilionários, a intensa exploração da mão-de-obra e a entrada de uma “nova geração” de jovens trabalhadores com opções alternativas de trabalhar numa “fábrica única” [12]. A “socialização” de grandes concentrações de trabalhadores em grandes fábricas, em proximidade estreita, facilita a ação coletiva. Profundas desigualdades, especialmente à luz do rápido crescimento dos capitalistas super ricos, ligados a funcionários políticos corruptos e a sindicatos irresponsáveis controlados pelo estado, levaram a uma “espontânea” ação direta de classe [13]. O impacto radicalizador da inflação é evidenciado pelo surto duma greve de grande porte de caminhoneiros em Baoshan, o maior porto da China, em Xangai: os trabalhadores protestaram contra o aumento dos custos do combustível e das taxas portuárias. Segundo uma notícia, “Funcionários chineses alertaram para que a brusca alta de preços e a crescente inflação da corrupção oficial constitui a maior ameaça ao governo do Partido Comunista”. ( Financial Times 4/23-24/11 p1)

As lutas sindicais orientadas politicamente apareceram recentemente na Venezuela, onde o governo de Chávez tem sublinhado o “conteúdo operário” da “revolução socialista bolivariana”. Isto encorajou os trabalhadores a entrar em greve nas empresas privadas para exigir a expropriação de capitalistas intransigentes assim como a alteração na gestão de empresas públicas substituindo tecnocratas burocráticos por trabalhadores [14].

A luta de classes menos desenvolvida passa-se nos Estados Unidos “em estagnação”. Uma combinação da baixa densidade sindical (93% dos trabalhadores do setor privado não estão sindicalizados) com uma legislação laboral altamente repressiva e uma liderança sindical milionária auto-perpetuadora, totalmente dependente do Partido Democrático capitalista, inibem o desenvolvimento da consciência de classe, com exceção de algumas “bolsas locais” de resistência [15]. A rápida erosão dos salários tem sido acompanhada por uma exploração acrescida (menos trabalhadores e uma produção reforçada) e pela redução dos últimos vestígios da rede social (segurança social e planos médicos para a população acima dos 65 anos) [16].

Poderíamos argumentar que o alto rendimento per capita, só por si, não é uma razão bastante para pressupor um enfraquecimento da luta de classes, já que a França e a Itália normalmente têm mais greves gerais do que a Inglaterra apesar de o rendimento per capita ser mais alto. O que é fundamental são os laços institucionais entre os sindicatos e os partidos democráticos laborais/sociais, por um lado, e a livre associação de assembleias de trabalhadores nas fábricas, por outro. Nos EUA e no Reino Unido a estagnação e a reação estão ligadas à subordinação da força de trabalho aos partidos neoliberais sociais-democratas/democratas, enquanto que em França e na Itália os sindicatos têm laços mais estreitos com as assembleias de fábrica e mantêm um grau mais alto de autonomia de classe [17].

Em outras palavras, não há uma regra rígida que ligue formas particulares da luta de classes ao dinamismo ou à estagnação da economia – o que tem que ser incluído é o grau de organização independente de classe capaz de elevar o nível da luta no meio das voláteis alterações econômicas e políticas.

Imperialismo, luta intercapitalista e luta de classes

Apesar das crises econômicas de 2007-2009, que abalaram a maioria – mas não todos – dos principais centros capitalistas neoliberais – a classe capitalista na Europa e na América do Norte ficou mais forte do que nunca. Seguindo as prescrições estabelecidas pelo Fundo Monetário Internacional, os principais bancos privados de crédito e os Bancos Centrais, toda a carga de pagamentos da dívida, de déficits fiscais e de desequilíbrios comerciais, da responsabilidade dos regimes neoliberais, foi atirada para cima das classes trabalhadoras e assalariadas. Em toda a “periferia” da Europa de Leste e do Sul foram aplicadas seletivas medidas de austeridade semelhantes. O resultado foi uma reestruturação radical de pensões, de salários, de relações sociais de produção – todo o conjunto de relações de classe estatais. Em consequência, ocorreu uma verdadeira contra-revolução “pacífica” socioeconômica “eleitoral” a partir de cima, que aprofunda a exploração da força do trabalho pelo capital enquanto concentra a receita nos 10% do topo da pirâmide social.

Os países imperialistas dos EUA e da Europa que enfrentam uma competição cada vez mais intensa dos BRICS (em especial da China) e dos países em vias de industrialização da Ásia e os crescentes preços dos bens, viraram-se para a procura de “competitividade” através duma exploração interna intensificada, duma maior pilhagem do erário público e de guerras imperialistas.

Apesar disso, esta competição intercapitalista está tendo um efeito inverso, aumentando os rendimentos dos trabalhadores dos BRICS e baixando os padrões de vida nos centros imperialistas instituídos. Isto porque os BRICS investem na economia de produção enquanto que os centros imperialistas esbanjam milhões de milhões nas forças armadas e na atividade especulativa [18].

É preciso fazer um reparo no que se refere à competição entre os países imperialistas e os BRICS, na medida em que há milhares de fios financeiros, comerciais, tecnológicos e de produção que os ligam uns aos outros. Apesar disso, os conflitos entre formações sociais são reais, tal como o é a natureza das clivagens internas de classes e das suas configurações. O imperialismo, tal como existe hoje, é um fardo para o avanço da classe trabalhadora [19]. Por ora a dinâmica interna das potências econômicas emergentes parece dotá-las com a capacidade de financiar o crescimento interno expandindo o comércio ultramarino e as concessões de salários à classe trabalhadora emergente que exige um quinhão do bolo de receitas em crescimento.

Conclusão

Embora à superfície haja um declínio da luta de classes revolucionariamente política, a partir de baixo, há potencial para que as lutas econômicas se tornem políticas no caso de a inflação corroer os ganhos e de os líderes políticos poderem fixar “linhas de orientação” rígidas sobre os aumentos salariais. Em segundo lugar, tal como ilustra a Venezuela, os líderes políticos podem proporcionar as condições que favorecem o avanço da luta de classes do econômico para o político.

Atualmente, a luta de classes política mais dinâmica vem de cima – o assalto sistemático a salários, à legislação social, às condições de emprego e de trabalho lançado nos EUA, na Espanha, na Grécia, na Irlanda, em Portugal, na Inglaterra e nos estados bálticos/balcânicos. Nestes países as crises econômicas ainda não provocaram a revolta das massas; em vez disso assistimos a ações defensivas, a greves de grande escala até, tentando defender conquistas históricas. Tem sido uma luta desigual em que a classe capitalista manobra as alavancas institucionais, políticas e econômicas, apoiada pelo poder internacional dos bancos e estados imperialistas. A classe trabalhadora não tem o que se lhe compare em termos de solidariedade internacional [20]. Os sinais mais promissores na luta de classes global encontram-se na ação direta dinâmica da classe trabalhadora latino-americana e asiática. Aí, conquistas econômicas sólidas levaram ao reforço do poder e organização de classe. Além disso, os trabalhadores podem basear-se em tradições revolucionárias para criar as bases para o relançamento de um novo projeto socialista [21] . Poderá isso detonar um novo ciclo de guerra de classe, política e econômica, a partir de baixo? O reaparecimento da inflação, da recessão, da repressão e de cortes ainda mais profundos poderá obrigar a força de trabalho a agir independentemente e contra o estado como personificação deste período regressivo.

25/Abril/2011

Notas de rodapé:

[1]
Sobre a luta dos trabalhadores na China ver “Os trabalhadores é que mandam” Financial Times (FT) 22/2/11, p. 3 e também FT 16/2/11 “Salários chineses aumentaram 12,6% entre 2000-2009 segundo o ILO”

[2] La Jornada 9/4/11 - A Confederação dos Trabalhadores Bolivianos exigiu um aumento de 15% nos salários. Em 2010, a Bolívia teve o maior número de conflitos em 41 anos El Pais 16/4/11.

[3] “Explosão da Inflação nos mercados emergentes” (Financial Times) 14/4/2011, p. 1 “Beijing obrigada a deixar subir o renminbi para combater a inflação” ( FT 17/4/2001) p. 3.

[4] Sobre o orçamento para o ano fiscal de 2012, de Obama, comparar New York Times 13/4/11 e 14/2/11. O último discurso sobre o orçamento sublinha mais de 4 milhões de milhões de dólares em cortes durante 10 anos, que afetam em grande medida a rede social, uma importante concessão aos extremistas republicanos da ala direita.

[5] Os trabalhadores gregos organizaram mais de seis greves gerais entre 2009 e 2011 (ver o semanário ateniense DROMOS desse período). Os trabalhadores espanhóis organizaram duas greves gerais em 2010. Portugal uma e a Irlanda uma importante manifestação.

[6] Dados compilados a partir dos Relatórios sobre o Emprego da Organização Internacional do Trabalho 2010-11.

[7] Ver Al Jazeera Fev–Março 2011. Sobre o papel repressivo da nova junta militar, ver Al Jazeera 7/4/2011.

[8] Reuters 14/2/11. Washington, nos bastidores, manobrando a instalação de um antigo correligionário de Mubarak, Field Marshall Tatawi, para chefe da junta é um exemplo flagrante.

[9] A incapacidade dos movimentos sociais árabes para assumir o poder repete um problema semelhante da década anterior na América Latina. Ver James Petras e Henry Veltmeyer Social Movements and State Power (London: Pluto 2005).

[10] Sobre a greve geral na Bolívia, ver “Central Obrera declaran huelga general” La Jornada (Cidade do Mexico)], 8 e 16 de Abril, 2011.

[11] Sobre a primeira volta das eleições presidenciais no Peru e do vencedor populista centro esquerda Ollanta Humala, ver BBC “Peru facing polarizing election as populists face off”, 12/4/2011.

[12] Segundo uma notícia “discute-se a subida dos custos da mão-de-obra (na China). Há oportunidades de emprego por todo o lado, há muito menor necessidade de emigração” Financial Times 18/3/11, p. 22.

[13] Sobre os multimilionários chineses ver Forbes Março 2011. Em consequência de “disputas irrefletidas entre Maio e Agosto (2010) os patrões foram atingidos por greves ou outros problemas. Isso resultou em aumentos de salários, nomeadamente um aumento de 30% na Foxcomm, um fabricante de Taiwan”. Financial Times 16/2/11, p. 3.

[14] Correo de Orinoco, Caracas, Venezuela (English edition weekly) 3-9 de Abril, 2010.

[15] A greve geral dos trabalhadores do setor público de Wisconsin em Março de 2011 foi a exceção à regra, a primeira do seu gênero, induzida pelo governador republicano e pela abolição efetiva da legislação de direitos de negociação coletiva. Com exceção de uma greve de um dia dos estivadores de São Francisco e de alguns protestos esporádicos noutros estados, a confederação americana do trabalho AFL-CIO não organizou uma única manifestação pública nacional, mantendo-se dependente do financiamento de muitos milhões de dólares dos políticos Democratas.

[16] O congressista Republicano Ryan propôs a privatização da segurança social e do programa de saúde sênior (Medicare) e uma redução draconiana das despesas com os cuidados de saúde aos pobres e deficientes. O presidente Obama prosseguiu com a sua versão de cortes sociais regressivos embora numa escala menor, mas na mesma direção. Ver o discurso de Obama ao povo americano no comunicado de imprensa da Casa Branca em 3 Abril, 2011. New York Times 14 Abril, 2011, p. 1.

[17] Discussões com delegados de fábricas e Luciano Vasapolla, secretário do movimento sindical italiano militante "Reto di communisti", Roma, Itália. 1 Maio, 2009.

[18] Sobre o impacto negativo da financeirização do capital e das despesas militares na economia produtiva, ver Michael Chossudovsky e Andrew Gavin Marshall ed The Global Economic Crises (Montreal: Global Research 2010) ESP. Cap. 3, PP. 72-101 e Cap. 9, pp. 181-211.

[19] Para uma exposição clara da relação entre imperialismo e decadência interna, ver James Petras and Morris Morley, Empire or Republic? American Global Power and Domestic Decay (New York: Routledge 1995).

[20] O “Fórum Social Mundial” e outros ditos “fóruns de esquerda” são essencialmente constituídos por discursos que criam oportunidades para as classes palradoras constituídas por acadêmicos e membros das ONG. Na maior parte dos casos as fundações e os patrocinadores proíbem-nos explicitamente de assumir uma posição política, e muito menos organizar apoio material para as lutas de classes existentes. Nenhuma das principais greves gerais da classe trabalhadora na Europa, na América Latina ou na Ásia recebeu jamais apoio material dos eternos assistentes dos fóruns de esquerda. O declínio do internacionalismo operário não foi compensado sob qualquer aspecto pela solidariedade internacional destas forças díspares.

[21] Apesar da demonização da Revolução Cultural e social na China e na Indochina, muitos gestores, líderes de grupos e até mesmo intelectuais liberais, têm consciência e receiam as consequências de “empurrar a classe trabalhadora longe demais”. Na América Latina o legado revolucionário das revoluções do passado e o exemplo de Cuba e da Venezuela ainda servem como uma herança viva das lutas revolucionárias.

O artigo original, em inglês,  encontra-se em: Capitalism and Class Struggle
Esta tradução, realizada por Margarida Ferreira, encontra-se em: Resistir 

A Doutrina do Choque - A Ascensão do Capitalismo de Desastre

Filme-documentário baseado no livro-denúncia “A Doutrina do Choque - A Ascensão do Capitalismo de Desastre”, da pesquisadora e ativista política Naomi Klein.


A Doutrina do Choque (The Shock Doctrine) - [legendado em português, completo]



Naomi Klein
É imperativo difundir este vídeo. Ponham nos vossos blogs, murais, mandem o link por mail, façam download. Primeiro caiu a Grécia, depois caiu a Irlanda, Portugal acabou de cair e a seguir é a Espanha. Para entender qual é o verdadeiro objetivo da consequência da entrada do FMI, é essencial ver este filme.



Este vídeo foi enviado por Beatrice e postado inicialmente por Diário Gauche