quarta-feira, 25 de maio de 2011

O dicionário das empregadas domésticas

Publicado em 25/05/2011 por Urariano Mota

Nos últimos dias, na gente mais educada causou espécie, para não dizer causou urticária, o livro didático  “Por uma vida melhor”, que ensinaria a falar errado. No entanto, ninguém se levantou, nem perdeu a paz de espírito, quando um ilustre desembargador, faz alguns anos,  achou por bem escrever um dicionário para as empregadas domésticas. É fato.
Atropelos e apelos de títulos não faltaram ao ilustre dicionarista. Erudito em Direito Civil, filiado à Associação Paulista dos Magistrados, escritor de verve, ele assim gracejou em artigo no  jornal dos seus pares:
“Ele ligou para sua própria casa. A empregada era nova. Ele não a conhecia. Sua mulher, a Esther, digo (ou ele  diz), dona Esther, tinha acabado de contratar. A moça era do norte. De Garanhuns. Nada contra, mas... sabe como é. Nós, brasileiros, sabemos! O patrão morava num sobrado. O telefone da residência ficava num nicho, embaixo da escada. No décimo segundo toque a Adamacena, a tal da empregada, atendeu: “Alonso!” Na dúvida, o dono da casa perguntou: “De  onde falam?” Ao que a Adamacena respondeu: “Debaixo da escada!” Foi aí que ele começou a catalogar as expressões da serviçal...”.

Na continuação do texto, para melhor diálogo com as inferiores, o preclaro e excelso organizou este pequeno dicionário das empregadas, para ser lido pelas classes cultas, do  gênero e classe dele no Brasil:
Denduforno - dentro do forno
Dôdistongo dor de estômago
Doidimai - doido demais
Dôsitamu dor de estômago
Gáscabô o gás acabou
Iscodidente escova de ente
Issokipómoiá - isto aqui pode molhar
Ládoncovim — lá de onde que eu vim
Lidialcom - litro de álcool
Lidileite - litro de leite
Mardufigo - mal do fígado
Mastumate massa de tomate
Nossinhora - nossa senhora
Óikichero olha que cheiro
Óiprocevê - olha pra você ver
Óiuchêro - olha o cheiro
Oncotô - onde que eu estou
Onquié - onde que é
Onquitá - onde está

Etc. etc. etc. poderia ser a leitura geral das “palavras” coligidas pelo senhor dicionarista. Se ele fosse um homem culto de facto, e não um culto de fato, fato da toga que um dia vestiu,  saberia que as diversas falas de uma língua não significam uma superioridade cultural, civilizacional,  de uma fala sobre a outra. Ora, as pessoas que vêm do interior do Nordeste, e é a elas que a sua brincadeira de mau gosto se referiu, os brutos migrantes dos sertões nordestinos carregavam, além da miséria, uma gramática que é uma história da língua. Quando eles dizem “figo”, em lugar de “fígado”, ou “hay”, em lugar de “há”, ou “in riba”, em lugar de “em cima”, ou mesmo “joga no mato”, por “deixa fora, joga fora”, essas palavras, esses modos e conteúdos de fala não nasceram de uma carne, sangue e lugar inferiores.
Esses cortes de sílabas, esse “denduforno” em lugar de “dentro do forno”, esse corte de fonemas na fala de todos os dias, essa aglutinação é um procedimento comum em todas as falas, do Norte ao Sul do mundo, do Leste ao Oeste do planeta, em todas as classes e gentes e tempos. Diz-se até que é uma obediência à lei do menor esforço. Quem é bom de ouvido sabe que a última sílaba de uma palavra em uma frase não se ouve, adivinha-se pelo sentido. Um “Como vai de saúde?”, sai quase como um “Como vai de saú?”. Se os ingleses transformam consoantes de palavras em vogais, bravo, isso é mesmo um fenômeno linguístico. Se os norte-americanos pegam os tês e põem em seu lugar erres, isso só pode mesmo ser inglês moderno. Bravo.
No Brasil, na região que move a economia, quando um paulista insiste em pronunciar “record” à inglesa, mas com erres à brasileira, ou quando pronuncia “meni”, em lugar de “menu”, está apenas no exercício da sua cultura poliglota. Aplausos. Quando ele, no bar, pede um só, mas ainda assim pede “um chopes”, é uma graça. Viva. Mas um “oxente”, um “arretado”, que traem e trazem a marca da fala de nordestinos, desses baianos, desses nortistas, ah, isto só pode mesmo ser uma prova insofismável de subdesenvolvimento.
Urariano Mota
Isso comentamos à margem, do texto do léxico das empregadas e da grande mídia. Mas o pequeno dicionário para as empregadinhas não sofreu qualquer indignação patriótica, lembramos bem. Faz sentido, enfim. Como dizia Marx, ao lembrar as diferentes traduções de classe, os proletários se embriagam no bar, os burgueses vão ao club.

2 comentários:

  1. (comentário enviado por e-mail e postado por Castor)
    Mas qual é o problema do desembargador ter feito o tal dicionário? Há poucos dias, a uma pessoa que ficou todos os dias, durante uma semana, dizendo que vinha apanhar um aparelho para consertar mas não vinha, eu perguntei: "como vocês chamam, aqui no sul da Bahia, uma pessoa que diz que vai fazer uma coisa e não faz, que não cumpre a palavra?" A resposta veio rapidamente: ENROLADO.

    Naturalmente que eu anotei a resposta para um eventual dicionário baianês. Algum problema?

    A minha pergunta tinha razão de ser, pois é raro encontrar gente aqui que apareça em horário marcado. Um marcou comigo ao meio-dia, na minha casa e às 11h45min eu sai correndo do banco para estar em casa na hora marcada e o cara não apareceu e nem telefonou para avisar que não iria ao encontro. As 14h telefonei e o cara me disse que chegou cansado do trabalho e foi dormir. Deve ser outro ENROLADO.

    Esse comportamento é normal aqui. Uma senhora de São Paulo fez as mesmas observações, pois já viveu diversas experiências semelhantes. Aqui os assíduos, os pontuais, os que honram os compromissos, estão ERRADOS e os ENROLADOS estão CERTOS.

    O professor Higgins, no filme My Fair Lady, baseado no Pigmaleão, do G.B. Shaw, anotava a fala das pessoas simples do povo. Era um estudioso do assunto. Em todo o mundo se anota modos de falar, se fazem registros a respeito. Por que o desembargador não pode?

    A Constituição diz que "Ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer a não ser em virtude de lei".

    Piadas, quem não as faz? Tem piada de português, de bicha, de advogado, de baiano, de carioca, de padre, de político, de evangélico, de corno, de milico e por ai vai. Tem piada de paulista sobre o "um chopes" Tem piada do cara que no restaurante pede o MENU e em seguida, depois de corrigido, pede uma CACHAMBI. Quer dizer que não se pode fazer piadas com empregadas domésticas?

    Vamos agora fazer campanha contra as piadas?

    Quem disse que "que as diversas falas de uma língua significam uma superioridade cultural, civilizacional, de uma fala sobre a outra?". O desembargador disse isso? Ora, muito provavelmente ele nem estava pensando nisso.

    E a Adamascena dizer "debaixo da escada" até parece piada de português. Dá para rir, sem que o riso se constitua em deboche ou preconceito. O meu avô era português e se divertia com as piadas que faziam com ele. E eu não dou a mínima para piadas de cariocas. É meramente uma questão de ser bem humorado e ter fair play.

    Mas atualmente estão vendo preconceito em tudo o que é lugar. Much ado about nothing.

    Até.

    Alfredo Pereira dos Santos

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  2. Caro Alfredo

    Três coisas:

    1. Não é nada demais escarnecer, debochar de pessoas do povo? (Claro, parto da hipótese
    de que empregadas domesticas, mesmo quando ignorantes e nordestinas, são pessoas.)

    2. Onde Shaw utilizou as diferenças de vocabulário, de expressão, de língua
    para satirizar e denunciar as divisões de classe, o medíocre desembargador zomba de "inferiores".

    3. Há um equívoco no sentido que você anotou para a palavra "enrolado". Ela significa
    inapto para o exercício de uma função. Ou, no limite, "confuso, complicado", o que termina
    por ser obstáculo para um trabalho. Quando os baianos lhe deram o diagnóstico para um
    trabalhador que deixou de comparecer, chamando-o de enrolado,o sentido era
    o mesmo: sujeito incapaz ou confuso.
    Faltar a um compromisso, marcar e não vir, tem outro nome: em Pernambuco é "farrapeiro". No resto do Brasil deve mesmo ser o mais geral: preguiçoso, indisciplinado, ou falto de caráter.

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