sexta-feira, 22 de julho de 2011

Paquistão: As sete vidas do Comandante Kashmiri (reprise)

Amir Mir é jornalista 

22/7/2011, Amir Mir, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu


ISLAMABAD. Fiel à sua reputação, o intangível estrategista da Al-Qaeda no Paquistão, comandante Ilyas Kashmiri, escapou mais uma vez à morte, se se pode crer nas notícias que chegam do Paquistão. 

Há uma semana, a rede CNN noticiou, citando fonte da inteligência norte-americana em Washington, que praticamente já não havia dúvidas de que Kashmiri fora morto dia 3 de junho, por aviões-robôs norte-americanos que atacaram a região tribal na fronteira entre Paquistão e Afeganistão. Funcionário da inteligência dos EUA disse à CNN que estava “99%” certo de que Kashmiri fora morto no ataque a um conjunto de edificações na vila de Gowakha na área de Wana, no Waziristão Sul. 

Os funcionários da inteligência americana não deram detalhes nem explicaram por que acreditavam que Kashmiri tivesse sido assassinado. Mas o principal grupo de mídia do Paquistão, a rede Dawn, noticiou, dia 15 de junho, que Kashmiri continuava vivo e ativo naquela região de fronteira. 

Apesar da farta repercussão em toda a mídia internacional de detalhes da morte do comandante Kashimiri que teria acontecido há quase seis semanas, até agora a al-Qaeda não se manifestou – o que jamais deixou de fazer sempre que um dos grandes chefes foi martirizado. 

Uma única declaração de martírio foi divulgada dia 4 de junho, pelo grupo de jihadistas que Kashmiri comanda – a Brigada 313 do Harkatul Jehadul Islami (HuJI). A declaração, distribuída por um antes desconhecido Abu Hanzala Kashir, que se apresentou como porta-voz do HuJI, dizia:

“Em nome da Brigada 313 do Jihad al-Islami de Harkat, confirmamos que nosso líder e comandante-em-chefe Mohammad Ilyas Kashmiri, e companheiros, foram martirizados em ataque de aviões-robôs dos EUA às 23h15 do dia 3/6/2011. Insha Allah [Se Deus quiser] o atual faraó norte-americano conhecerá em breve nossa plena vingança. Nosso único alvo é a América.”

Mas a declaração do grupo HuJI perdeu credibilidade, depois que se confirmou que uma foto do que seria o corpo de Kashmiri, postada na Internet pelo mesmo autoproclamado porta-voz do HuJI, era foto forjada.

A declaração do grupo HuJI foi postada na internet, no Fórum Shamukh al-Islam, frequentado por simpatizantes da al-Qaeda, com uma imagem do que seria uma foto do rosto de Kashmiri já morto. Mas os agentes da segurança do Paquistão, que trabalhavam para confirmar a morte do comandante da Brigada 313, identificaram o homem que aparecia na foto postada pelo HuJI: era Abu Ismail Khan, um dos integrantes do esquadrão de dez suicidas (fidayeen) Lashkar-e-Toiba (LeT) que atacaram Mumbai dia 26/11/2008, matando 166 pessoas, entre as quais mais de 20 não indianos. 

Abu Ismail Khan, 25, que vivia em Dera Ismail Khan, comandou o grupo de suicidas que atacou Mumbai e foram mortos por agentes das forças indianas de segurança, quando não obedeceram ao sinal de parar o carro em que viajavam. Mohammad Ajmal Kasab, que acompanhava Khan no mesmo carro, foi o único capturado vivo depois do ataque. 

Sob interrogatório, Kasab disse que Ismail Khan seria o responsável pela morte do comandante do esquadrão antiterror da Índia, Hemant Karkare. Dia 5/5/2010, uma corte especial em Mumbai condenou Kasab à pena de morte, pelo assassinato direto de sete pessoas e indireto de outras 65, agindo com seu parceiro Abu Ismail Khan – cujas fotos estão disponíveis na Internet. Atualmente, Kasab está apelando à justiça do Paquistão, tentando reverter a sentença de morte.

As autoridades paquistanesas têm, no mínimo, três fotos de Abu Ismail Khan: uma do cadáver, numa estrada em Mumbai, depois do confronto com policiais; a segunda, uma imagem do rosto, em close up, também depois de morto; e uma terceira, imagem normal, do tamanho de foto para passaportes.

Ilyas Kashmiri
Kashmiri, hoje com cerca de 47 anos, é conhecido por ter perdido um olho em combates contra as tropas soviéticas no Afeganistão nos anos 1980s. A imagem que se viu parece ter um olho ferido, mas não se pode saber se é ferimento recente, sofrido num ataque de aviões-robôs, ou se é cicatriz antiga. A foto que o grupo HuJI distribuiu pela internet mostra homem jovem, em torno dos 20 anos, sem barba; Kashmiri usa barba preta, densa, pintada com henna.

Outros que também trabalham para confirmar o destino de Kashmiri duvidam, desde o primeiro momento, da autenticidade da declaração do grupo HuJI; dizem que o suposto porta-voz errou ao escrever o nome da organização jihadi. O nome oficial –Harkatul Jehadul Islami – é árabe; e na declaração redigida por Abu Hanzla Kashir aparece duas vezes com erros de ortografia. 

Da primeira vez, escreveu Harkat-e-Jehad al-Islami; depois, escreveu Harkat-e-Jehad-e-Islami. Em termos gramaticais, as duas grafias – em árabe e em urdu – estavam erradas. Dadas as discrepâncias nas imagens, a declaração distribuída por porta-voz do HuJIe a inexistência de qualquer confirmação por teste do DNA, nenhum investigador paquistanês deu-se por convencido de que Kashmiri tivesse sido morto. Para eles, o mais provável é que a declaração do grupo HuJI tenha sido distribuída para que se suspendessem as investigações em andamento para localizar Kashmiri.

(...) Semana passada, outra vez cresceram as dúvidas sobre a morte de Kashmiri, quando o ministério de Relações Exteriores do Paquistão, em Islamabad, recebeu mensagem escrita à mão, enviada pelo Harkatul Jehadul Islami, com ameaças contra a Alta Comissão Paquistanesa em Delhi; a Comissão deve parar de partilhar informações sobre o grupo com o governo da Índia. 

“Se o governo paquistanês continuar a partilhar informação sobre o HuJI com os indianos, os fidayeen atacarão o Ministério de Relações Exteriores do Paquistão, a secretaria do Exterior em Islamabad e a Alta Comissão Paquistanesa em Nova Delhi.” 

A carta, manuscrita em idioma urdu, foi enviada por correio para a casa do Secretário do Ministério do Exterior do Paquistão Salman Bashir, no Setor F-6, em Islamabad. Foi examinada por peritos, que confirmaram que fora, sim, enviada pelos HuJI de dentro de Islamabad – o que despertou temores de que Kashmiri, afinal, continuasse no comando. 

Kashmiri já foi dado como morto duas vezes, na mesma semana – dias 7 e 14/9/2009, depois que os aviões-robôs dos EUA atacaram alvos na vila de Turikhel, próxima da cidade de Mir Ali, no Waziristão Norte.

Mas quase um mês depois de confirmada a morte, Kashmiri ressurgiu e prometeu vingar-se dos EUA; disse que os EUA faziam muito bem, ao persegui-lo. “Os EUA me conhecem. Sabem do que sou capaz e que faço o que digo” – em palavras do próprio Kashmiri.[1]

Dia 10/10/2009, o quartel-general do exército do Paquistão foi atacado em Rawalpindi. Os que investigam o ataque de 22/5/2011 à base naval Mehran em Karachi dizem que foi réplica daquele ataque ao quartel-general. Naquela mesma entrevista ao jornalista Syed Saleem Shahzad, perguntado sobre o que o teria levado a converter-se, de amigo bem amado, em inimigo n. 1 aos olhos doestablishment militar paquistanês, Kashmiri foi claro: “Não consigo nem pensar em atacar interesses do Paquistão, meu país bem-amado. O exército do Paquistão jamais se pôs contra mim. O que há são alguns elementos que tentam pintar-me como inimigo, para encobrir as próprias fraquezas e acalmar os seus superiores”1. 

Kashmiri foi o primeiro Jihadi paquistanês, em toda a história, definido pela ONU e pelos EUA como “terrorista global especialmente perigoso” em agosto de 2010, sobretudo por suas conexões com a al-Qaeda. Descrito como sucessor de Osama bin Laden por nada menos que a rede CNN no ano passado, Kashmiri é, provavelmente, o único fugitivo Jihadi procurado não só pela Índia, mas também por Paquistão, EUA, Reino Unido, Alemanha e França.

Dia 6/8/2010, o Departamento do Tesouro dos EUA e a ONU definiram  Kashmiri “terrorista global especialmente perigoso”, o que o pôs em companhia de Osama bin Laden e de seu braço-direito Ayman Zawahiri (hoje líder da al-Qaeda), dois homens aos quais jurou fidelidade. 

O governo Barack Obama deu recentemente ao Paquistão o prazo limite de julho/2011 para organizar ataque militar ao Waziristão Norte e capturar os cinco líderes mais procurados dos Talibã e da al-Qaeda, dentre eles Kashmiri.

A extensão do medo que Kashmiri inspira ao ocidente pode ser avaliada pelo tipo de acusações apresentadas contra ele pelo Departamento de Justiça, em janeiro de 2009, quando um Grande Júri no Distrito Norte de Illinois acusou-o por crimes associados a terrorismo no ataque terrorista contra o jornal Jyllands-Posten na Dinamarca, que publicou charges obscenas com a imagem do Profeta Maomé (Que a Paz Esteja com Ele). 

Segundo a acusação, um dos jihadis agentes de Kashmiri, David Coleman Headley, americano-paquistanês (cujo nome verdadeiro é Dawood Gillani e que cumpre pena de prisão perpétua nos EUA, condenado por crimes de terrorismo) definiu os principais alvos para os ataques de 2008 em Mumbai. 

O Departamento de Justiça dos EUA concluiu, naquela acusação, que Kashmiri estaria trabalhando com Headley no final de 2008, imediatamente depois dos ataques em Mumbai, para planejar outros ataques; que, para isso, estaria infiltrando terroristas altamente treinados, nos EUA e na Europa. Headley revelou que fora levado até o cinturão tribal na região da fronteira Paquistão-Afeganistão em 2009, para uma reunião com Kashmiri. 

Produto gerado na origem pelo establishment paquistanês que o armou para comandar a  jihad em Jammu e Kashmir contra os soviéticos, Kashmiri acabou por cair em desgraça, quando se recusou a obedecer ordens de um jovem jihadista – Maulana Masood Azhar, que acabava de fundar o grupo Jaish-e-Mohammad (JeM) no início de 2001, depois de ser libertado de uma prisão indiana, na negociação em troca de passageiros sequestrados de um avião indiano, em 1999. 

Depois do raid militar para expulsar os militantes da Lal Masjid (Mesquita Vermelha) em Islamabad, em julho de 2007, Kashmiri mudou sua base operacional; deixou Kotli, sua cidade natal, e instalou-se no Waziristão Norte, para participar da luta liderada pelos Talibã afegãos contra os exércitos norte-americanos de ocupação, no Afeganistão. 

Diferente do que alguns jornais têm publicado, Kashmiri nunca trabalhou para o Grupo de Serviços Especiais [orig. Special Services Group (SSG)] do exército paquistanês; sequer algum dia esteve alistado no exército. Abraçou a jihad há cerca de 30 anos; quando se uniu aos jihadis afegãos a partir da plataforma do HuJI, começou a acumular vasta experiência em guerra de guerrilhas e uso de explosivos. 

No período de meses, depois de chegado ao teatro de guerra no Afeganistão, Kashmiri remodelou a guerrilha afegã liderada pelos Talibã, usando para isso a estratégia de guerrilha “dos três braços” do legendário general vietnamita Vo Nguyen Giap. Mas, deliberadamente, adotou posição em que não se destacava na hierarquia dosjihadistas, e jamais reivindicou como vitória sua qualquer das operações terroristas que comandou. 

Sua “Brigada 313” é considerada principal agente catalisador de vastas operações, como a de Mumbai e outras no Paquistão e no Afeganistão. 

Sabe-se que vários membros dos grupos Lashkar-e-Jhangvi (LeJ), HuJI, LeT, JeM, Jundallah, dentre outros grupos de militantes paquistaneses, fundiram-se com a al-Qaeda no Paquistão; esse é o conjunto de militantes que opera sob a bandeira da Brigada 313. 

Interessante que a Brigada 313 também teve página e portal na Internet, em cuja tela de abertura, no centro, lia-se “Brigada 313 da Al-Qaeda”, acima dos nomes dos grupos HuJI, LeJ, Jundallah e do Movimento do Talibã Paquistanês, um em cada um dos quatro cantos da tela. 

Aquela página mostrava retratos de Kashmiri e de vários outros altos comandantes da al-Qaeda. Kashmiri estabeleceu-se como capitão do “exército de sombras” da al-Qaeda – Lashkar-e-Zil (LeZ) – que mantém uma aliança maleável com milícias anti-EUA ligadas à al-Qaeda e aos Talibã. O LeZ distingue-se por conduzir operações de guerrilha que se podem descrever como ‘incomuns’, como a que atacou a Base de Operações Avançadas da CIA em Khost, no Afeganistão, dia 31/12/2009, em que morreram vários espiões da CIA-EUA. 

Membros da família Kashmiri que vivem no Paquistão ainda não estão convencidos da morte do comandante, mas confirmam que não recebem nem notícias nem dinheiro enviado por ele, há cerca de seis meses. 

A família do comandante Kashmiri vive em Thathi, sua cidade natal, na província de Azad Kashmir administrada pelo Paquistão. O irmão mais velho do Comandante, de 50 anos, Chaudhry Asghar, segundo os jornais paquistaneses, teria dito que: 

“Não acredito que tenha morrido. Não temos qualquer confirmação oficial. Até o pessoal do serviço secreto nos procurou para saber se havia alguma confirmação ou informação nova. Respondemos sempre que não há confirmação nem informação. Se soubéssemos que nosso irmão foi morto na luta da jihad não esconderíamos sua morte e nos orgulharíamos de mais um mártir. 

Há anos, Kashmiri costumava visitar-nos, vez ou outra. Ficava um, dois dias, e desaparecia. Agora, não o vemos desde 2005, quando saiu da prisão. Cheguei a sugerir que mudasse de vida e começasse a viver conosco, com a família. Nunca concordou e sempre repetiu que continuará a combater os soldados dos EUA no Afeganistão. Depois da discussão, que foi séria, saí da cidade, ainda com esperança de que ele decidisse ficar. Mas não ficou. Depois, soube que dissera aos filhos: ‘Que se viva ou morra não é importante. Tenho de cumprir minha missão’.”




Nota dos tradutores
[1] Entrevista exclusiva que Kashimiri deu ao jornalista Syed Saleem Shahzad: “Al-Qaeda's guerrilla chief lays out strategy”, Asia Times Online, 15/10/2009. Sobre o mesmo assunto, ver “Duas Estratégias Islamitas que se Opõem: A Al-Qaeda contra os talibãs”, Syed Saleem Shahzad, Le Monde Diplomatique, 6/7/2007.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.