quinta-feira, 28 de julho de 2011

“Pela porta dos fundos, Mr. Murdoch, please”

22/7/2011, Geoffrey Wheatcroft, The New York Review of Books Blogs, vol. 58, n. 12
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


No estranho vaudeville que foi o “interrogatório” de Rupert e James Murdoch no Parlamento britânico dia 19 de julho – que Rupert ensaiou aplicadamente –, desde a frase “Foi o dia mais triste da minha vida”, que desencadeou solidariedades e protestos, até o momento final, em que alguém tentou jogar uma torta-pastelão em Murdoch, que foi salvo por salto verdadeiramente acrobático de Mrs. Murdoch, parece que outra frase, dita já ao final do depoimento, passou despercebida: “Queria que eles me deixassem em paz”.

R. Murdoch por John Springs
“Eles”, naquela frase, são os principais políticos britânicos – líderes de partidos e primeiros-ministros – que jamais deixaram de cortejar Murdoch, incansável e descaradamente, inclusive David Cameron. Em maio do ano passado, Murdoch foi convocado para encontro em Downing Street 10, dois dias depois de Cameron assumir o cargo de primeiro-ministro; Murdoch disse que o encontro lhe pareceu pura perda de tempo. Por que Murdoch não entrou, como um dos deputados perguntou durante a audiência, pela porta da frente, como outros notáveis? “Porque me disseram que eu, por favor, entrasse pela outra porta”, Murdoch respondeu.

Murdoch dizer que gostaria que os políticos o deixassem em paz talvez soe arrogante ou pouco inteligente, mas não há dúvidas de que não tinha prazer algum naquelas reuniões; precisava, só, que os políticos lhe dessem o que queria. Quase sempre deram. E aí está o problema.

Um ou dois analistas tentaram defender Murdoch. Seu admirador e biógrafo indulgente William Shawcross defendeu-o na rede BBC. Disse, mais uma vez, que a derrota que Murdoch impôs aos sindicatos de gráficos há 25 anos beneficiou toda a imprensa. Matthew Parris, ex-deputado conservador e hoje colunista altamente remunerado do Times de Murdoch, disse que “essa história de grampos não passa de ridícula hiper encenação”; e Simon Jenkins, ex-editor doTimes e correspondentemente ex-empregado de Murdoch, escreve que “A Grã-Bretanha enlouqueceu (...) Morreu alguém?” e insiste que “sua [de Murdoch] influência na indústria da comunicação foi de inovador serial”.

A verdade é que alguém, sim, morreu, assassinada: a repulsa pública contra o grampo e a invasão ao correio de voz de uma menina assassinada não foi invenção dos inimigos de Murdoch. E os espantosos acontecimentos do mês – o fechamento sacrificial do jornal News of the World, a autodemissão de Rebekah Brooks e de Les Hinton (os dois que Murdoch mais quis proteger), a prisão de um ex-editor de News of the World, Andy Coulson, e depois de outro(a), Mrs. Brooks, a renúncia do chefe da Polícia Metropolitana e de seu vice – não são, exatamente, trivialidades.

A operação frenética de controle de danos que os Murdochs acionaram não está funcionando, como se pode ver. Cada dia, desde que estiveram em Westminster, trouxe-lhes alguma nova péssima notícia. Cameron dizer que nada houve de “não apropriado” em seus contatos com Mrs. Brooks equivaleu a ele admitir que o tema “BSkyB”, a operadora de televisão por satélite cujo controle acionário (mais 39% das ações, além das que já são suas) Murdoch queria comprar, sim, apareceu nas conversas da dupla.

Na mais recente reviravolta da história, dois ex-executivos da empresa News International publicamente desmentiram partes do depoimento de James Murdoch sobre o ex-jogador de futebol e hoje executivo do sindicato de jogadores ingleses Gordon Taylor, que teve seus telefones grampeados, processou o jornal News of the World e em seguida aceitou polpuda indenização extra-judicial para calar-se. À época do acordo, a empresa News International dizia que um único “repórter bandido” [ing. “rogue reporter”] seria responsável pelo grampo. Mas os advogados de Taylor apresentaram provas importantes de que os grampos telefônicos eram recurso amplamente empregado e, obviamente, autorizado: uma mensagem de e-mail dirigida a um dos principais repórteres do jornal News of the World, com a transcrição de uma mensagem de correio de voz extraída de telefone celular grampeado.

No Parlamento, James Murdoch disse aos deputados que jamais vira o e-mail crucial; ontem, Colin Myler, último editor de News of the World no momento em que o jornal foi fechado, e Tom Crone, chefe do departamento jurídico do jornal, desmentiram-no cabalmente: “A memória de James Murdoch, do dia e hora em que foi informado e concordou com o acordo no caso de Gordon Taylor, o traiu”. O filho de Murdoch disse que ninguém lhe falara sobre o e-mail. “A verdade é que nós o informamos” – disse Tom Crone.

E como se não bastasse, o escândalo expôs a extensão dos laços de corrupção crônica que ligavam a empresa News International e a Polícia Metropolitana de Londres. É quase inacreditável, mas agora se sabe que dez, dos 45 assessores de imprensa da Polícia Metropolitana eram ex-empregados da NI; também não há dúvida possível de que o jornal News of the Worl  pagava propinas a policiais, com regularidade.

Dado que o jornal é propriedade também de uma empresa norte-americana, a prática de corromper funcionários públicos pode gerar processo criminal também nos EUA. E o FBI já iniciou investigação de acusações de que empregados de Murdoch podem ter grampeado mensagens de voz de vítimas dos atentados de 11/9. Se as acusações forem comprovadas, além das consequências legais, o efeito na opinião pública norte-americana será devastador. Será interessante observar o que fará a claque de jornalistas leais a Murdoch, do Wall Street Journal, para tentar neutralizar esse efeito.

Pois mesmo assim, apesar de todos esses horrores barrocos, a verdadeira história não é a dos jornais de Murdoch e os métodos repulsivos usados por seus repórteres: é a força, o peso descomunal da influência política que Murdoch exercia através de seus jornais. 

Por mais que a responsabilidade pela conduta obscena dos jornais que comandava caiba a Murdoch, a culpa pelo modo como exercia esse poder político ilegítimo e arbitrário é dos políticos que, por tanto tempo, ajoelharam-se, reverenciais, à sua frente. Cameron é o mais recente, e talvez ainda consiga provar alguma inocência. Mas é preciso dizer que, em todos os casos, Cameron nunca foi tão cínico, tão sem princípios, tão amoral em seus negócios com Murdoch, quanto Tony Blair.

No dias das eleições em 1992, the Sun superou-se a si mesmo, com a manchete que pôs na primeira página (“Se Neil Kinnock vencer hoje, o último que sair da Grã-Bretanha apague a luz”). Depois que os Conservadores já estavam reeleitos (e Kinnock renunciara à liderança do Partido Trabalhista) um doador de campanha dos Conservadores disse off the records que os Conservadores deviam a vitória, de fato, aos tablóides. O comentário alimentou um surto de onipotência do jornal que manchetou, também na primeira página: “O Sun é o grande vitorioso”. Provavelmente, mais uma mentira. Mas Blair estava convencido de que o Sun fora, sim, eleito. 

Logo que assumiu a liderança dos Trabalhistas ingleses em 1994, Blair passou a trabalhar para firmar uma aliança com Murdoch; no ano seguinte viajou à Austrália, para discursar na reunião anual da News Corp mundial (onde fez discurso que o posicionou muito mais à direita que qualquer dos predecessores). Não há dúvidas de que o Sun apoiou Blair em três eleições, e o Times foi convertido em verdadeiro Pravda do Novo Trabalhismo, com acesso irrestrito aos meandros obscuros da cabeça de Blair, e falando pela boca de seu pestilento, imundo assessor de imprensa e porta-voz, Alastair Campbell.

Os dois jornais tinham acesso privilegiado às notícias. A data em que Blair convocaria as eleições de 2001 foi vazada para o Sun antes até de Downing Street ter comunicado à rainha e chefe de Estado. Lance Price, que trabalhou na Downing Street de Blair, disse que todos sempre sentiam que Murdoch era uma invisível 25ª presença nas reuniões do Gabinete. E nenhum jornalista foi mais íntimo da casa que Tom Baldwin do Times, que às vezes falava como boneco de ventríloquo de Campbell.

Essa aliança foi plenamente explorada durante os meses que levaram à invasão – desnecessária, inútil e ilegal – do Iraque. O próprio Murdoch disse, sobre a invasão, que “a maior coisa que sairá disso, para a economia mundial, se se pode dizer assim, será o petróleo a $20 o barril”. Mas o Sun entendeu que sinceridade tão brutal, em tão altas doses, seria excessiva para muitos de seus leitores. Então, em vez do que Murdoch dissera, o Sun publicou, no dia 15/3/2003, que “Saddam armazenou armas de destruição em massa e recusa-se a entregá-las”; simultaneamente, Richard Littlejohn, colunista do Sun, escreveu que “será guerra, a menos que Saddam Hussein entregue suas armas de destruição em massa. Ele as tem. Sabemos que as tem. Ele sabe que nós sabemos que as tem.”

Esse relacionamento sórdido e manipulatório entre o governo de Blair e a imprensa foi exposto, do modo mais repulsivo, quando Downing Street, subrepticiamente, vazou a identidade de David Kelly, o inspetor de armas que, horrorizado ante a desavergonhada barragem de propaganda, dissera à BBC, em entrevista off the record, que o que Downing Street estava dizendo sobre armas de destruição em massa no Iraque não passava de grosseiro exagero.

Depois que Blair, pessoalmente e privadamente, tomou a decisão de “demitir” Kelly, começaram a pingar pistas de sua identidade, e vários jornalistas foram sendo conduzidos até a completa identificação. O Financial Times foi o primeiro a publicar o nome completo de Kelly, mas os jornais de Murdoch chegaram imediatamente depois. Kelly foi arrastado até uma comissão parlamentar de inquérito, onde foi agredido, insultado e humilhado. Suicidou-se dois dias depois.

Seria de supor que, depois de tudo isso, os honrados e ‘éticos’ Conservadores afastar-se-iam de qualquer relação mais próxima com Murdoch (ou, no mínimo, que tentariam encobrir suas relações com mais eficácia), mas Cameron também já fora fisgado. Em julho de 2007, contratou Andy Coulson como seu “diretor de comunicações”, ou sua resposta a Campbell. 

Também é muito significativo que a coisa mais próxima de um verdadeiro emprego, que Cameron jamais tivera, antes de ser eleito ao Parlamento, foi o de chefe de Relações Públicas numa empresa de televisão de segunda classe, Carlton Communications – na qual nunca foi reconhecido, em tempo algum, pelos escrúpulos.

Quando Coulson foi contratado, os Conservadores haviam despencado nas pesquisas, e perderam a cabeça. Coulson foi recomendado a Cameron por George Osborne – o que Rebekah Brooks confirmou no depoimento ao Parlamento. Osborne é o atual ministro das Finanças da Grã-Bretanha [ing. Chancellor of the Exchequer], e só resta rezar para que mostre mais prudência no trato das finanças públicas. Cameron e Osborne eram muito conscientes do próprio pedigree, de filhos de famílias abastadas, educados em escolas caras, que uma vez trajaram os paletós azuis do afamado Bullingdon Club em Oxford. Careciam desesperadamente de alguém como Coulson, que sabia falar às massas, por direitos de nascimento.

E Coulson acabava de ser forçado a demitir-se da editoria do News of the World já acossado pelas primeiras nuvens do escândalo dos grampos. Mas as nuvens só fizeram aumentar. Antes da eleição, Cameron foi alertado, privadamente, por Alan Rusbridger, editor do Guardian (jornal que persistiu na investigação, até que a história dos grampos estourou), de que provas que apareceriam na investigação em andamento, de um assassinato, seriam muito graves, contra Coulson, em função do envolvimento dele com um detetive e escroque.

Mesmo assim, Cameron insistiu em trazer Coulson para Downing Street. E ele lá ficou mesmo depois de a New York Times Magazine noticiar, em setembro passado, que Coulson era cúmplice direto no crime de grampear telefones. Dia 5 de outubro, Cameron disse que “não temos uma única reclamação a fazer sobre como [Coulson] trabalhava (...). É homem que serviu ao governo e atualmente dirige um bem sucedido escritório de assessoria de imprensa”. Coulson só deixou Downing Street em janeiro, quando as nuvens, de tão inchadas, desabaram, como dilúvio e como inferno.

Se a tolice de Cameron, antes de tudo, ao contratar Coulson, já seria indesculpável, a insistência em manter-se colado a ele, enquanto mais e mais provas se acumulavam, pareceria incompreensível, não fosse essa uma daquelas questões em cuja explicação tropeça-se, mesmo sem procurá-la. Tudo, hoje, leva a crer que Cameron, sim, desejava manter um agente de ligação com a empresa News International: um laço direto com Murdoch. OK. Teve o seu. E vejam no que deu! 

Tudo isso deu a Ed Milliband sua primeira oportunidade para brilhar, depois de meses marcando passo na obscuridade, desde que se tornou líder dos Trabalhistas em setembro. E Milliband agarrou-se a ela, batendo o mais que pôde em Cameron, o qual, então, também estava obrigado a romper qualquer laço que o ligasse a Murdoch. A declaração de independência de Milliband aconteceu quando disse, depois das revelações, que Murdoch não poderia ser autorizado a comprar a BSkyB. No mesmo momento, Murdoch retirou sua proposta, tática de retirada, evidentemente, na esperança de depois voltar, apesar de, hoje, todo o negócio já ser politicamente inconcebível.

“Com visão panorâmica e a posteriori e considerado tudo o que se seguiu”, Cameron discursou na Câmara dos Comuns, falando de Coulson, “eu nunca lhe ofereceria o emprego e espero que ele nunca aceitasse”. Qualquer ser humano sabe que não seria necessária nenhuma visão panorâmica: bastaria o mais elementar bom senso, ou o talento básico conhecido como autopreservação. Milliband tem muito que dizer contra Cameron, sim. Mas... Quem Milliband contratou como seu “diretor de estratégia e comunicação”?! Ninguém menos que Tom Baldwin! 

O mais engraçado é que, ano passado, ainda no Times, Baldwin ostentou o furo – excitante –, de que Ed Milliband concorreria à liderança dos Trabalhistas, contra seu irmão David Miliband, até então, a aposta mais quente. E nem bem Ed assumira a nova função em janeiro, quando Baldwin mandou instruções para os deputados da linha de frente dos Trabalhistas, no sentido de que “evitassem comentários que dessem a impressão de ataque desmedido a um grupo jornalístico”. Um doce, a quem adivinhar que grupo Baldwin tinha em mente. Ainda não apareceu político inglês cujas mãos não sejam manchadas de murdochismo.

Nada autoriza a supor que os truques sujos de News of the World sejam exclusividade dos tablóides de Murdoch, ou que a imprensa popular ‘aprenderá a lição’: até que o crime de grampear telefones converteu-se em “grande notícia”, inevitável, inescapável, o que se ouvia era o silêncio ensurdecedor sobre o assunto no Daily Mail e no Daily Mirror. A única coisa que aconteceu, depois de tantos e tantos escândalos anteriores, é uma ostentação de arrependimento fingido, algum tempo de moderação e então, como viciado que não resiste à droga, tudo voltará a ser feito como antes, pelos velhos sujos caminhos.

Até aqui, a resposta dos tablóides tem sido “denunciar” a cobertura que a BBC ofereceu da história, e reclamar, furiosamente, contra qualquer tentativa de regulação da imprensa. 

Há, sim, urgente necessidade de reformar-se a lei da mídia, para obrigar a imprensa a respeitar a privacidade dos cidadãos e a servir ao interesse público. Mas, isso, é o que nos prometem há anos, e continuamos à espera.

Seja como for, pode-se afirmar, no mínimo, que a obscena influência que Rupert Murdoch exercia sobre a política britânica, se não acabou, sofreu duro baque. Quebrou-se o feitiço. Vince Cable, ministro do gabinete Liberal Democrata que já enfrentou Murdoch, comparou o estado de espírito reinante em Westminster ao êxtase popular quando cai um tirano. 

Cameron, em tom compungido-grandiloquente, diz que todos “temos de aprender as lições e fazer, do momento presente, momento de catarse”. Sim, sim. E a primeira lição é que, para o futuro, os magnatas bilionários das empresas de comunicação e mídia sejam mantidos bem longe da convivência com primeiros-ministros, ministros etc. Nada muda, de fato, se são obedecidos, se entram pela entrada principal ou pela porta dos fundos.

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