domingo, 4 de setembro de 2011

Contraterrorismo?

Conor Gearty, “Short Cuts”, London Review of Books, vol. 33, n. 17 (8/9/2011), p. 20
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

A terceira versão da Estratégia de Contraterrorismo do Reino Unido (CONT-EST, Home Office, em inglês), vale-se de iniciativas anteriores dos Trabalhistas – metade, pseudo análises das atuais capacidades da al-Qaeda; metade, conversa fiada de corretor de seguros –, mas “reflete mudanças na ameaça terrorista” e “incorpora novas políticas do governo”. Também fala do “compromisso do governo com a transparência” – embora devesse falar, mais precisamente, em compromisso com a propaganda.

Por trás de muita aclamação de “valores britânicos fundamentais” e de ameaças a “nossos interesses no além-mar”, o que se vê é o discurso neocolonial de toda a empreitada, como se alguém tivesse desenterrado algum escrito de Joseph Chamberlain e, em vez de falar de “missão civilizatória” e “pacificação dos aborígenes”, metesse lá “direitos humanos” e “império da lei”.

Fica-se sabendo que, em 2009 “houve cerca de 11 mil ataques terroristas em todo o mundo, causando cerca de 15 mil mortes”, ataques acontecidos “sobretudo no Paquistão, Afeganistão e Iraque”. Nem uma palavra sobre por que esses locais seriam mais perigosos que outros quaisquer: são meros “estados falidos ou frágeis” que “oferecem ambiente favorável ao terrorismo”. À guisa de análise, o que lá se lê é: “As dificuldades nas quais os propagandistas podem basear-se podem ser reais ou fruto de impressão superficial, embora, claro, nenhuma delas justifique o terrorismo”. 2010 não foi melhor, com 13 mil mortos em “mais de 11.500 ataques terroristas (...) a maioria dos quais ainda obra da al-Qaida e grupos terroristas associados” em alguns locais – agora também na Somália.

Lembro-me de entrevista que fiz com Paul Bremer quando ainda era enviado especial  do presidente Reagan para assuntos de contraterrorismo (sic), bem antes de comprometer-se com a infâmia e servir como primeiro governador do Iraque ocupado. Atrás dele, na parede, um grande gráfico mostrava o inexorável crescimento do número de ações terroristas em todo o mundo, com várias setas coloridas, a maior das quais, correspondente ao ano anterior, depois de uma sequência de setas menores, em declínio. Perguntei-lhe sobre a anomalia. “Não é nada. Nesse ponto (fim do período de declínio no número de ataques), nós redefinimos o conceito de terrorismo”.

A maior parte dos dados considerados para elaborar o documento recém lançado pelo Home Office britânico vêm de fontes com nomes como Combating Terrorism Center de West Point ou National Counterterrorism Center – agência governamental criada por George W. Bush em 2004, com a finalidade de “integrar todos os instrumentos da força nacional, para assegurar unidade de esforço”. O documento CONT-EST vem com muitos elaborados infográficos em que se assinalam “ataques terroristas”, “áreas de estresse global” e países de origem dos agora 47 grupos “terroristas” banidos do Reino Unido. (Lembro de quando nem o IRA foi banido, tão seriamente se respeitava, no Reino Unido, a liberdade de associação.) A Al-Qaeda aparece em várias siglas, por causa de suas muitas bases de operações: AQ-AP (na Península Arábica), AQ-M (no Maghreb), AQ-I (no Iraque), AQ-KB (áreas curdas) e assim por diante. Atraentes boxes destacam pérolas como “Pressupostos para o planejamento 2011-15 no Reino Unido: geograficamente, países vitais para nosso trabalho de contraterrorismo continuam a ser o Afeganistão e o Paquistão, o Iêmen, a Somália e a Nigéria”.

Em que pé estaria a Grã-Bretanha, não fosse o terrorismo internacional? Perdeu um império e, sem mais nem menos, já encontrou outro, um “império do mal” cheio de aborígenes a serem subjugados.

Há também uma quinta coluna, uma guerra a ser travada em casa mesmo, contra aborígenes que invadiram o quartel-general imperial. Tories e liberais democratas fizeram muito barulho sobre a erosão das liberdades civis quando estavam na oposição e o menor partido da coalizão precisava de vitórias também por aqui. Mas, em vez dos controles dos neotrabalhistas, temos agora “Medidas de Prevenção e Investigação do Terrorismo” [ing. Terrorism Prevention and Investigation Measures (TPIMs) – ordens de controle, sob marca de fantasia. Limite máximo de 28 dias de detenção sem acusação deve desaparecer – senão em “circunstâncias excepcionais”. Poder policial para deter e revistar será abolido – e substituído por algo que CONT-EST diz que será “poder mais cerrado e definido”, mas que não define.

Serão investigadas as denúncias de colusão em torturas praticadas por autoridades britânicas, mas a promessa é tão vaga e tudo foi tão atentamente descaracterizado, que os grupos que pressionaram a favor dessas investigações preferiram declarar que nada têm a ver com a coisa. E o governo continua a não admitir, nos tribunais, provas interceptadas que, se aceitas nos tribunais, necessariamente levariam os “contraterroristas” a julgamento, em processo criminal.

O sem-cerimônia com que as ansiedades dos liberais democratas relacionadas à perda de liberdades civis foram superadas e convertidas em discussões-beco-sem-saída sobre câmeras de vigilância e arapongagem geral oficial, chamou a atenção até dos que já nada esperam, em termos de coragem, da personalidade política dos liberais democratas.

A estratégia de contraterrorismo do Reino Unido está dividia em quatro “linhas de trabalho”: “Procurar”, “Preparar”, “Proteger” e “Prevenir”, a última das quais – que autoriza a “impedir que pessoas abracem o terrorismo ou apóiem o terrorismo” –, de tão importante, mereceu edição à parte, em publicação oficial. O livreto Prevent (HMSO, £28.50) visa diretamente todos os que falem para disseminar “a ideologia associada à al-Qaeda” e participem de “grupos extremistas” que contribuem para “radicalizar processos pelos quais as pessoas em geral venham a apoiar e, em alguns casos, mesmo, a participar do terrorismo”. (Não interessa que estudo encomendado pelo Departamento de Comunidades e Governos Locais do Reino Unido já tenha declarado que “não se observou nenhum caso de alguém que tenha passado, de militância pacífica, para militância em grupos de ação violenta”.)

Os Trabalhistas são criticados, por terem trabalhado com grupos muçulmanos: em discurso numa reunião sobre segurança, de líderes europeus, em Munich, em fevereiro, Cameron reclamou que “organizações que se apresentam como ponte de contato com a comunidade muçulmana” receberam “abundante dinheiro público”. Adiante, disse que “temos tomado muito cuidado, francamente, francamente, posso dizer que temos até medo, de favorecer “posições ou práticas inaceitáveis” que “nos cheguem por alguém que não seja branco” [1].

O problema, então, como o governo vê as coisas, é muito mais amplo que o terrorismo. A coisa pega, mesmo, é com quem não partilha “nossos valores”. “Prevenir” dedica-se a “ideias extremistas esposadas por organizações aparentemente não violentas que muitas vezes têm existência legal e autorizada” e – outra vez – a “grupos e oradores que deliberadamente e atentamente não transgridem a lei”.

O documento que o Home Office britânico acaba de publicar deve ser das primeiras publicações oficiais de todos os tempos, em que obedecer a lei soa como se fosse um novo tipo de crime.

Querem que acreditemos que grupos extremistas só “parecem não violentos”, porque usam o truque subversivo de não usar meios violentos e de nunca aprovar ou endossar que outros usem meios violentos.

Agora, todos estamos avisados: “grupos extremistas” que “deliberadamente e atentamente não transgridem a lei” e “decididamente não apóiam a violência”... são todos “simpatizantes dos terroristas” e, pois, nossos piores inimigos. Que todos fujamos de qualquer grupo suspeito de “respeitar a lei”, na Grã-Bretanha. Acho que bem faríamos se, todos, fugíssemos também da lei.



Nota dos tradutores
[1] 28/3/2011, sobre discurso de Cameron dia 3/2/2011. New York Times, em: British Shift on Muslims Is Ominous

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