quarta-feira, 21 de setembro de 2011

“É a economia POLÍTICA, estúpido!”

 Slavoj Žižek

10/10/2008, Slavoj Žižek, London Review of Books 
(só na edição online)
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

Um dos traços mais impressionantes da reação ao atual derretimento do mercado de ações [atenção: o artigo é de 2008!] é que, como disse um dos atores: “Ninguém, de fato, sabe o que fazer.” Isso, porque expectativas são parte do jogo: como o mercado reage a uma determinada intervenção depende não só de o quanto banqueiros e corretores confiam na intervenção, mas, e mais, de o quanto eles creem que os outros confiarão neles. Keynes comparou o mercado de ações a uma competição na qual os participantes têm de escolher várias lindas garotas de uma centena de fotos: “Não se trata de escolher as que, pelo juízo de cada um, são as mais bonitas, nem, sequer, de escolher as que sejam tidas como mais bonitas, de fato, pela opinião média. Alcançamos já o terceiro estágio, no qual devotamos nossa inteligência a tentar antecipar o que a opinião média esperará que seja a opinião média. Somos forçados a escolher sem ter o conhecimento que nos capacitaria a escolher. Ou, como disse John Gray: ‘Somos forçados a viver como se fôssemos livres’.”[1]

Joseph Stiglitz escreveu recentemente que, embora haja crescente consenso entre os economistas de que nenhum resgate baseado no plano de Henry Paulson funcionará, “é impossível, para os políticos, nada fazer numa crise como essa. Assim sendo, temos de rezar para que um acordo construído da mistura tóxica de interesses especiais, economias viciadas e ideologias de direita que gerou a crise consiga, sabe-se lá como, produzir plano de resgate que funcione – ou cujo fracasso não cause excessivo dano” [2] Está correto: uma vez que os mercados são, sim, baseados em crenças (inclusive em crenças sobre crenças de outras pessoas), o modo como mercados reagem ao resgate depende não só das consequências reais, mas de os mercados crerem na eficiência do plano. O resgate pode funcionar, ainda que seja economicamente errado.

Há íntima semelhança entre os discursos de George W. Bush desde o início da crise e os discursos que fez ao povo norte-americano depois do 11/9. Nas duas oportunidades evocou a ameaça ao American way of life e a necessidade de ação rápida e decisiva para enfrentar o perigo. Nas duas, pediu a suspensão parcial de valores dos EUA (das garantias de liberdade individual, num caso; do capitalismo de mercado, no outro), para salvar os mesmos valores que queria suspender.

Postas diante de desastre sobre o qual não temos influência efetiva, é comum que as pessoas digam, estupidamente, que “Não basta falar, é preciso fazer algo!” Parece que, nos últimos tempos, temos feito demais. Talvez seja hora de dar um passo atrás, pensar e, afinal, dizer coisa com coisa. É verdade que, em geral, falamos sobre fazer, mais do que fazemos – mas às vezes fazemos coisas para evitar falar e pensar sobre o que fazemos. Como enfiar $700 bilhões num problema, em vez de pensar sobre o que fez surgir o problema.

Dia 23/9 [2008], o senador Republicano Jim Bunning acusou o plano do Tesouro dos EUA para o maior resgate financeiro desde a Grande Depressão de ser “antiamericano”: “Alguém tem de assumir essas perdas. Podemos deixar que os que tomaram decisões erradas sofram as consequências de suas escolhas, ou podemos transferir as dores para outros. Isso, exatamente, é o que o Secretário propõe que se faça: peguem as dores de Wall Street e transfiram para os contribuintes (...) Esse resgate massivo não é a solução, é socialismo financeiro e é antiamericano.” 

Bunning foi o primeiro a expor o substrato da revolta dos Republicanos contra o plano de resgate, que alcançou o clímax quando o plano foi rejeitado, dia 29/9 [2008]. A resistência foi formulada em termos de “luta de classes”, Wall Street contra a Rua Principal: por que deveríamos ajudar os responsáveis pelos erros (‘Wall Street’) e deixar que os tomadores comuns (da Rua Principal) paguem por eles? Não é perfeitamente o caso do que os economistas chamam de “risco (a)moral” [ing. moral hazard]. É o risco de que alguém aja imoralmente, porque um seguro, a lei ou outros agentes o protegem contra qualquer eventual perda que o comportamento imoral ou criminoso possa causar: se tenho seguro contra incêndio, por exemplo, pode acontecer de eu me tornar descuidado ou, mesmo, de por fogo à casa que me custa manter. Vale o mesmo para grandes bancos, que são protegidos contra grandes perdas e, sempre, podem preservar seus lucros.

Que a crítica do plano de resgatar grandes financeiras tenha vindo, simultaneamente, tanto dos Republicanos quando da esquerda deve nos faz pensar melhor. Nesse caso, esquerda e direita partilham o mesmo desprezo por grandes especuladores e gerentes de grandes corporações que lucram com decisões arriscadas, mas são protegidos contra a falência por “paraquedas de ouro”. Sobre isso, o escândalo da Enron em janeiro de 2002 pode ser interpretado como comentário irônico à noção de sociedade de risco. Milhares de empregados que perderam os empregos e todas as economias estavam, sem dúvidas, expostos ao risco, e pouco podiam fazer ou opinar sobre os negócios da empresa. Mas os altos diretores e gerentes, que sabiam dos riscos e tinham meios para agir, minimizaram os próprios riscos, vendendo ações e opções antes da bancarrota. Portanto, embora seja verdade que vivemos em sociedade que nos impõe escolhas arriscadas, é sociedade na qual os poderosos fazem as escolhas, e os outros correm os riscos.

Se for mesmo medida “socialista”, o plano de resgate é socialista de modo bem estranho: medida ‘socialista’ para ajudar não os pobres, mas os ricos, não os que tomam empréstimos, mas os emprestadores. Parece que ninguém tem nada contra o ‘socialismo’, desde que sirva para salvar o capitalismo. Mas... e se houver um “risco (a)moral, um moral hazard”, inscrito na estrutura fundamental do capitalismo? O problema é que não há como separar o bem-estar da Rua Principal e o bem-estar de Wall Street. A relação entre as duas é não transitiva: o que é bom para Wall Street nem sempre é bom para a Rua Principal, mas a Rua Principal não pode prosperar se Wall Street andar mal das pernas – e essa assimetria assegura uma vantagem a priori para Wall Street.

O argumento “torto” contra a redistribuição (mediante taxação regressiva, etc.) é que, em vez de tornar os pobres mais ricos, ela torna os ricos mais pobres. Contudo, essa atitude só aparentemente anti-intervencionista esconde um argumento a favor da atual intervenção estatal: embora todos desejemos que os pobres melhorem de vida, é contraproducente ajudá-los diretamente, porque os pobres não são o elemento dinâmico e produtivo. A única ‘boa’ intervenção será ajudar os ricos a ficar mais ricos, e, então, automaticamente, os lucros espalhar-se-ão e chegarão aos pobres. Jogue muito dinheiro em Wall Street, que ele, eventualmente, escorrerá até a Rua Principal. Se você quer que o povo tenha dinheiro para construir, não dê o dinheiro diretamente ao povo, mas ajude os que vivem de emprestar dinheiro ao povo. Só assim se cria prosperidade genuína – a alternativa será o estado meramente distribuindo dinheiro para os mais necessitados à custa dos que realmente criam riqueza.

É fácil demais descartar esse raciocínio como defesa hipócrita dos ricos. O problema é que, enquanto vivermos presos ao capitalismo, temos de encarar que há alguma verdade naquele argumento: o colapso de Wall Street realmente atingiu os trabalhadores comuns. Por isso os Democratas que apoiaram o resgate não tiveram atitude inconsistente com suas tendências de esquerda. Teriam sido inconsistentes, sim, se aceitassem a premissa dos Republicanos populistas para os quais o capitalismo e a economia de livre mercado seriam assunto sobre o qual devessem ouvir a classe trabalhadora, e que intervenções estatais seriam estratégia da classe ‘alta’, para explorar os trabalhadores.

Nada há, de novidade, em intervenções estatais fortes no sistema bancário e na economia em geral. O “crack”, ele mesmo, é efeito dessa intervenção: quando, em 2001, explodiu a “bolha” das empresas pontocom, resolveu-se facilitar o crédito para redirecionar o crescimento na direção de construírem-se mais residências. A verdade é que as decisões responsáveis pelas relações econômicas internacionais são sempre decisões políticas. 

Há alguns anos, uma matéria da CNN sobre o Mali expôs claramente a realidade do “livre mercado” internacional. Os dois pilares da economia do Mali são o algodão no sul e o gado no norte, e as duas regiões estavam em crise por causa do modo como as potências ocidentais violam as regras que elas mesmas impõem tão brutalmente às nações do Terceiro Mundo. O Mali produz algodão de altíssima qualidade, mas o estado, nos EUA, gasta mais dinheiro em subsídios aos produtores norte-americanos de algodão que o orçamento nacional do Mali. Não é surpresa para ninguém que o Mali não consiga competir no mercado. No norte, a culpa é da União Europeia: a EU subsidia cada vaca europeia, com quinhentos euros por ano. O ministro da economia do Mali disse: não precisamos de ajuda nem de assessoria nem de conselhos nem de aulas sobre os efeitos benéficos de abolirem-se regulações estatais excessivas. Basta, por favor, que vocês respeitem as regras que vocês mesmos inventaram, para o “livre mercado”, e acabam-se os problemas. Por onde andavam, então, os republicanos que defendem o “livre mercado”? Sumiram de cena, porque o colapso do Mali é resultado do que significa os EUA porem “nosso país em primeiro lugar”.

O que tudo isso indica é que o mercado jamais é neutro: todas as suas operações são sempre reguladas por decisões políticas. O real dilema jamais é “intervenção estatal ou não?”, mas “que tipo de intervenção estatal?” E esse é um dilema político: a luta para definir as condições que governam nossa vida. O debate sobre os negócios do resgate dos bancos, com decisões sobre traços fundamentais de nossa vida social e econômica, mobilizando, até, o fantasma da luta de classes. Como acontece em muitas verdadeiras questões políticas, essa questão é suprapartidária. Não há opinião “objetiva” de especialista que possa ser apenas aplicada: é indispensável enfrentar a decisão política.

Dia 24/9[2008], John McCain suspendeu a campanha eleitoral e foi para Washington, dizendo que seria hora de pôr de lado as diferenças partidárias. Foi gesto que realmente sinalizava que estaria disposto a pôr fim à política partidária, para enfrentar os reais problemas que nos dizem respeito a todos? Definitivamente, não: foi um momento “McCain parte para Washington”, mais nada. Política é, precisamente, a luta para definir o terreno “neutro”, razão pela qual a proposta de McCain, de que se apagassem as linhas partidárias era puro jogo de cena política, política de partido, mascarada como não partidária, tentativa desesperada para impor sua posição como se fosse universal-apolítica. Pior ainda que política partidária, é política partidária que tenta mascarar-se como não partidária: que visa a impor-se, ela mesma, como se fosse alguma voz do Todo. Essa política reduz os oponentes, porque os põe como agentes de interesses particulares. (...) Nas eleições de 1992, Clinton venceu com o mote “É a economia, estúpido!” Os Democratas precisam incorporar outra mensagem: “É a economia POLÍTICA, estúpido!” Os EUA não precisam de menos política. Precisam de mais.



Notas dos tradutores

[1] John Maynard Keynes, The General Theory of Employment, Interest and Money, cap. 12: “The State of Long-Term Expectation”, em inglês. 
[2]  Joseph Stiglitz, Bail-out blues”, The Guardian, UK, 30/9/2008.

Um comentário:

  1. (comentário enviado por e-mail e postado por Castor)


    Esse Slavói Jíjeke é deveras inteligentérrimo!

    Um abraço do
    ArnaC

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