quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A rua líbia não admitirá que Gaddafi seja executado pelo Ocidente

Nath Aldalala'a (de Londres),
8-14/9/2011,Al-Ahram Weekly, Cairo
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

Entreouvido na Vila Vudu
“Isso, sim, ninguém JAMAIS
lerá na imprensa brasileira!”


Muammar Gaddafi
A resolução n. 1.973 do Conselho de Segurança da ONU garantiu à Organização do Tratado do Atlântico Norte o direito de intervir na Líbia para proteger civis de uma suposta retaliação pelo ex-governante líbio Muammar Gaddafi, que se supôs que seria brutal. Consequência da campanha da OTAN na Líbia, o regime caiu, mas Gaddafi continua ativo. Nas próximas semanas se definirá o tipo de futuro imediato possível para a Líbia.

A situação será influenciada por vários diferentes cenários – se Gaddafi for capturado e entregue vivo à Corte Internacional de Haia, ou se for assassinado antes disso, ou se continuar ativo, como hoje. Ouviram-se conclamações frenéticas a favor da prisão de Gaddafi e há quem o deseje morto, no frenesi que ainda cerca as tentativas de inventar uma nova Líbia.

Fato é que, por mais que a prisão de Gaddafi e de seus filhos, com posterior julgamento do governante líbio, possa dar a impressão de ato de justiça, nem por isso ajudará a pacificar a Líbia. Ao contrário. Para boa parte do povo líbio, só contribuirá para aprofundar a rejeição popular ao Conselho Nacional de Transição e aos países ocidentais que intervieram no conflito. Para começar, porque na Líbia e no mundo árabe poucos reconhecem ou respeitam a Corte Internacional da ONU: por exemplo, porque ninguém foi levado a julgamento depois do massacre de Jenin em 2002 ou do massacre de Gaza em 2009.

A Resolução n. 1.973 autorizava a criar uma zona aérea de exclusão na Líbia, quer dizer, visava à paz, não a gerar guerra civil. Mas a intervenção pela OTAN ainda pode ser vista como efetiva e satisfatória, sobretudo se os poderes intervencionistas, com o Conselho Nacional de Transição, conseguir construir solução que honre todas as partes envolvidas, inclusive o próprio governo de transição.

Quando o Profeta Maomé entrou em Meca em 630 do Tempo Comum[1] com seu exército de 10 mil soldados, os quraysh foram derrotados e os mecanos prepararam-se, fosse para uma carnificina fosse para a paz. O Profeta Maomé perguntou: “Quraysh, o que pensam que vou fazer com vocês?” A mensagem do Profeta ao povo foi: “Deus os perdoa. Deus é o mais generoso dos generosos. Vão: estão livres”. A generosidade que o Profeta manifestou mudou a história do Islã e permanece como selo de abertura e grandeza, que é marca permanente da sociedade árabe.

É exemplo a ser seguido por nação que se orgulha de ter sido construída sobre valores islâmicos.

Sabe-se que em março Gaddafi apresentou uma proposta ao Conselho Nacional de Transição, na tentativa de construir um acordo que possibilitaria que deixasse o poder. Pediu garantias de vida para ele e para sua família, e garantia de que não seria levado a julgamento. Segundo a rede de televisão Al-Jazeera, o Conselho Nacional de Transição disse ao jornalista correspondente da rede em Benghazi que a proposta havia sido rejeitada, porque implicava garantir “saída honrosa” a Gaddafi, o que implicaria ofender as vítimas de seu regime.

Mas a verdade é que questões de honra nunca são simples, nem se apagam facilmente. Muitos árabes, embora denunciem o governo de Gaddafi e desejem ardentemente vê-lo substituído, percebem com clareza que as ações dos rebeldes líbios nada foram além de obediência a ordens que recebem de potências ocidentais. Ato honrado, para o Conselho Nacional de Transição, portanto, seria preservar, menos a dignidade pessoal de Gaddafi, e, mais, a dignidade da tribo na qual nasceu. Esse movimento pouparia a Líbia de anos de vingança fratricida e evitaria aprofundar fissuras que já dividem os líbios.

Nesse momento, a Líbia precisa de gestos que visem a restaurar a unidade nacional, a qual, sem dúvida, estará ameaçada pelas consequências seja do assassinato de Gaddafi seja de sua prisão e julgamento por Corte Internacional cuja legitimidade não é unanimemente reconhecida pelos líbios. Cenário no qual Gaddafi seja preservado não afetará gravemente a segurança nacional, mas conseguirá demonstrar que o Conselho Nacional de Transição não busca nem buscará vingança. Além disso, será oportunidade para que o Conselho Nacional de Transição demonstre independência dos desígnios das potências ocidentais que, hoje, se empenham contra Gaddafi em furiosa caça às bruxas.

Depois da queda de Trípoli, há indícios de que Gaddafi novamente propôs negociações para transferir o poder. Teriam sido, nas palavras do secretário de Relações Exteriores da Grã-Bretanha William Hague, “delírio”; mas foram também excepcional oportunidade para restaurar a paz e acalmar o país.

Gaddafi teme ser julgado pela Corte Internacional, porque esse julgamento converterá o legado de sua revolução a legado criminoso, o que ele lutará até o fim para evitar que aconteça. Assim, por mais que seu oferecimento para fazer a transferência pacífica do poder possa parecer delirante, ainda assim demonstra que Gaddafi entende o significado do que está em disputa e o significado de sua sobrevivência. O homem que governou a Líbia por tantas décadas, com certeza não é tolo, nem louco. Fosse, e nem a Líbia seria o que foi, nem os líbios seriam o que hoje são.

É impressionante, por exemplo, que, apesar dos muitos anos durante os quais o ocidente o identificava como terrorista, Gaddafi tenha sido visitado, em Trípoli, em 2007, pelo presidente francês Nicolas Sarkozy. Em 2008, Gaddafi e o primeiro-ministro italiano assinaram tratado de cooperação sem precedentes, entre Itália e Líbia, em Benghazi. No mesmo ano, Gaddafi encontrou-se oficialmente com a ex-secretária de Estado dos EUA Condoleezza Rice; pouco depois, o ex-presidente dos EUA George W. Bush assinou, ao lado de Gaddafi, a Ordem Executiva n. 13.477, que devolveu ao governo da Líbia plena imunidade contra processos relacionados a terrorismo e cancelou ordens judiciais que obrigariam a Líbia a pagar compensações, em casos que ainda estavam sob julgamento nos EUA.

Também em 2009, Gaddafi visitou Roma para encontro de chefes de Estado com Berlusconi e o presidente da Itália Giorgio Napolitano. Participou como chefe de Estado da reunião de cúpula do G8, e, durante essa visita, sentou-se ao lado de Berlusconi em jantar oficial oferecido pelo presidente da Itália. O presidente dos EUA Barack Obama também apertou-lhe a mão nessa visita. E em 2009 Gaddafi encontrou-se oficialmente com os senadores norte-americanos John McCain e Joe Lieberman. Recebeu em Trípoli o primeiro-ministro russo Vladimir Putin em abril de 2008 e, em outubro do mesmo ano, foi recebido como hóspede oficial em Moscou, pelo presidente Dmitri Medvedev.

Essa lista de contatos, recepções e convites prova que Gaddafi sempre ocupou posição de destaque em fóruns e contextos políticos internacionais – o que de modo algum sugere que fosse louco perigoso ou ‘delirante’. Hoje, é líder derrotado, mas qualquer humilhação extra a que seja submetido, será desonra para sua tribo e para todos que o apoiaram os quais, sem dúvida, voltarão à superfície tão logo se acalme a tempestade que hoje varre a Líbia. O Conselho Nacional de Transição deve trabalhar para evitar essa situação – se é que, como tem declarado, tem alguma intenção séria de preservar a paz e a harmonia, numa futura Líbia. 

Por tudo isso, por mais que se tenha de reconhecer que é urgente restaurar a normalidade na capital e em outras cidades pelo país, também é imperativo trabalhar para que se implante na Líbia um espírito de clemência e moderação, ainda que, hoje, esse projeto pareça incrível ou inviável, sobretudo se se ouve o que têm dito o Conselho Nacional de Transição e diplomatas ocidentais.

Em entrevista recente, Hague disse que “já está acontecendo a transferência de poder. Os ministros do Conselho Nacional de Transição estão em Trípoli e ganham cada dia mais pleno controle da situação. Falta apenas que os remanescentes do governo Gaddafi desistam de lutar.” Mas Hague várias vezes destacou que qualquer decisão sobre o destino de Gaddafi deveria ser deixada ao povo líbio.

Guma Al-Gamaty, coordenador britânico para o Conselho Nacional de Transição, confirmou que “a única negociação que interessa é como prender Gaddafi, dizer-nos onde está e que condições espera ver atendidas para entregar-se: se quer cela individual ou coletiva, se que banheiro privativo, essas coisas... Só essas negociações nos interessam”.

É fala de quem supõe que não precise negociar, que não mostra a sensibilidade que a situação exige, de quem não sabe responder à difícil situação objetiva. Foi fala sarcástica – sarcasmo que não se ouviu de Gaddafi, quando chamou de “ratos e viciados em drogas” os rebeldes líbios.

Os hoje heróicos rebeldes correm o risco de, no futuro, dividir-se em facções, todos lutando contra todos por uma fatia do bolo. Muitos dos rebeldes são ex-membros do comitê revolucionário, que mudaram de lado. O mais provável é que tornem a mudar de lado. A Brigada Islâmica recusou-se a combater sob comando de “infiéis” – e essa brigada é apenas uma das várias que, com certeza, exigirão autonomia para falar.

O fato de o Conselho Nacional de Transição ter oferecido recompensa pela cabeça de Gaddafi – dinheiro que teria sido oferecido por um empresário líbio – também lança dúvidas sobre a própria natureza do Conselho Nacional de Transição. Já se está convertendo em governo cowboy.

Contudo, o Governo Nacional de Transição ainda tem oportunidade de ouro para garantir anistia a Gaddafi e seus seguidores, ao mesmo tempo em que poderá mostrar compromisso com o Estado de Direito. Nada disso garante que a transição política seja suave, na Líbia, mas é o único caminho possível para tentar conter a violência de futuras hostilidades.



Nota dos tradutores
[1] Ing. C.E. (Common Era), “Tempo comum” é notação que tem sido usada em substituição ao AC (Antes de Cristo) e AD (Anno Domine), mais frequentes no Ocidente (em inglês).

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