quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Uma política de pensamento para a Era da Internet? O perigoso culto pró “Guardian”

Jonathan Cook

28/9/2011, Jonathan Cook, Counterpunch
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

Não há melhor prova da revolução que a internet está fazendo, oferecendo acesso à melhor informação e a comentários-interpretações bem informados, que a reação da imprensa-empresa da “mídia” dominante.

Pela primeira vez, públicos ocidentais – ou, pelo menos, os que podem comprar computadores – encontram meios para escapar à vigilância dos cães de guarda de nossas infelizes democracias “midiáticas”. Dados que em outros tempos foram mantidos cuidadosamente secretos podem hoje ser lidos e pesquisados por gente que não é paga para não deixar ver a hipocrisia ocidental. Wikileaks, sobretudo, rapidamente demoliu os sistemas hierárquicos tradicionais de distribuir informação.

A imprensa – pelo menos o componente de esquerda que se supõe que haja na imprensa – deveria estar comemorando essa revolução; deveria, também, é claro, estar trabalhando para viabilizar essas novas conquistas. Mas, não. Praticamente todas as empresas de comunicação e jornalismo trabalham só para cooptar as conquistas, para domá-las ou subvertê-las. Como se pode ver, jornalistas e colunistas considerados progressistas cada vez mais usam suas plataformas na imprensa dominante para desacreditar e ridicularizar os arautos dos novos tempos.

Bom objeto de estudo, quanto a isso, é o jornal britânico Guardian, considerado o jornal mais decididamente à esquerda da Grã-Bretanha, que rapidamente vai ganhando status e culto de “jornal cult” nos EUA, onde muitos leitores tendem a assumir que, naquelas páginas, encontrarão a mais límpida verdade, em amostra de todo o campo do pensamento crítico de esquerda.

É verdade que o Guardian oferece bom material de reportagem e, vez ou outra, algum comentário mais aprofundado. Talvez por estar mais longe do coração do império, o jornal ofereça antídoto parcial à cobertura acovardada da imprensa-empresa nos EUA.

Mesmo assim, nada aconselha crer que o Guardian seria algum tipo de livre mercado para ideias progressistas ou para os dissidentes de esquerda. Aliás, longe disso: o jornal policia rigorosamente o que se pode e não se pode dizer em suas páginas, por razões bem pouco nobres, como examinamos adiante.

Até há pouco tempo, os leitores ainda podiam viver na confortável ignorância de que vários autores e pensadores, interessantes ou provocadores, são, sim, terminantemente proibidos para citação ou menção nas páginas do Guardian. Antes das versões online, o Guardian ainda podia alegar as dificuldades de espaço, para não incluir mais amplo espectro de vozes. Esse motivo, é claro, desapareceu, com o crescimento da Internet.

Desde o primeiro momento, o Guardian viu tanto o potencial de crescimento quanto a potencial ameaça que lhe vieram com a revolução da Internet. Respondeu com a criação de um blog aparentemente aberto a todos (Comment is Free), no qual contava domesticar parte da energia bruta liberada pela internet. Arregimentou um exército de escritores, ativistas e propagandistas, a maioria sem qualquer remuneração, dos dois lados do Atlântico, para ajudar a reposicionar a marca Guardian como o suprassumo da imprensa-empresa democrática e pluralista.

Mas nunca, desde o início, o blog Comment is Free (CiF) foi tão livre quanto se dizia – senão no sentido de que a empresa Guardian sempre se sentiu livre para não pagar salário aos “colaboradores” que trabalham no blog. Inúmeros autores da esquerda, sobretudo os considerados “fora do esquema” [orig. “beyond the pale”] no contexto da velha imprensa-empresa, continuaram, como antes, sem acesso à tal nova plataforma “democrática”. Outros, dentre os quais eu mesmo, logo descobrimos que havia limites aparentemente inexplicáveis, mas sempre intransponíveis, para o que se podia escrever no blog CiF (e limites que nada tinham a ver com moral ou bons costumes).

Nada disso deveria ser questão importante. Afinal, há muitos outros lugares onde publicar, além do Blog CiF do Guardian, para fazer-se ouvir. Por toda a rede há dissidentes distribuindo análises alternativas dos eventos atuais e chamando a atenção para a informação que a imprensa-empresa não publica ou publica como notícia sem importância.

Mas, em vez de acolher esse tipo de concorrência, ou de resignar-se ao surgimento de imprensa realmente pluralista, o Guardian reverteu à imagem-tipo de antes. Voltou a autoapresentar-se como “a política de pensamento” da esquerda.

De novidade que, dessa vez, nada garante que algum jornal-empresa consiga silenciar completamente a “esquerda que contesta”. A internet acabou com a fácil solução de antes, quando os jornais-empresas silenciavam, por exclusão absoluta, as vozes de contestação. Pelo que se vê hoje, o Guardian adotou a tática de desqualificar os autores que, por serem realmente provocadores ou por suas ideias realmente avançadas, possam fazer-ver a covarde política conformista, enquadrada, do Guardian.

E o Guardian passou a desacreditar “a esquerda” – que nenhum dos jornalistas e colunistas do jornal jamais define – em campanha que nada tem a ver com algum tipo democrático de luta de ideias. E, sempre, o Guardian encontra amparo nos imensos recursos das empresas e corporações proprietárias do jornal. Quando ataca autores e pensadores dissidentes, os atacados só muito raramente, e na maioria das vezes nunca, encontram plataforma “com igual espaço e destaque” para defenderem-se. E já se viu que o Guardian é sempre muito relutante, e resiste o mais que consiga, a garantir justo direito de resposta a quem o jornal-empresa calunia.

Além do quê, e quase imperceptivelmente, o Guardian praticamente nunca encampa as ideias desses autores ou jornalistas “não alinhados”. Em termos populares, o Guardian marca a canela do jogador, não marca a bola. Cria e distribui calúnias, que vão das apenas absurdas às claramente difamatórias, que empurram aqueles autores ou jornalistas ou pensadores para o território do absurdo, do não razoável, ou do sórdido inadmissível.

Exemplo típico da nova estratégia do Guardian viu-se essa semana, em artigo impresso nas páginas de editoriais e colunistas do próprio jornal – disponíveis também online, e espaço muitíssimo mais prestigioso que o Blog Comment is Free  que o jornal encomendou a autor socialista, Andy Newman [1], com instruções expressas para que dissesse que o músico judeu israelense Gilad Atzmon [2] seria antissemita, de uma tendência de antissemitismo discernível na esquerda.

Jonathan Freedland, colunista empregado “star” do Guardian e obcecado na perseguição a antissemitas, tuitou para seus seguidores que o artigo de Newman seria “importante”, porque “conclama a esquerda a começar a atacar o antissemitismo também em suas fileiras.” [3]

Não tenho notícia de Atzmon ter algum dia manifestado ideias antissemitas – nem antes nem depois de ler o artigo de Newman.

Como já se tornou rotina nessa nova modalidade de assassinato de reputação pelo Guardian, o artigo não faz qualquer esforço para provar que Atzmon seria antissemita ou para mostrar que haveria qualquer motivo para pôr em evidência essa sua pressuposta falha de caráter. (Diga-se, de passagem, que no artigo de Newman há idêntica acusação de antissemitismo contra Alison Weir, do blog “If Americans Knew” e também contra nossa página [Counterpunch] na internet, por termos publicado artigo assinado por Weir, sobre o papel de Israel no tráfico de órgãos [4]).

Atzmon acaba de publicar um livro sobre a identidade judaica, The Wandering Who? [“Errante”, quem?], já elogiado por figuras respeitadas como Richard Falk, professor emérito da escola de Direito em Princeton, e por John Mearsheimer, conhecido professor de política da Chicago University.

Mas Newman não critica o livro nem extrai dele qualquer citação. De fato, tudo sugere que sequer tenha lido o livro de Atzmon ou tenha qualquer ideia do que contém.

Newman abre o artigo com elogios ao talento e à mestria musicais de Atzmon, com uma referência muito vaga a escritos seus, pressupostos “antissemitas”. Em seguida, algumas longas frases extraídas de escritos de Atzmon, suficientemente longas para sugerir alguma suspeita (não se sabe exatamente do quê); e curtas demais e por demais afastadas de qualquer contexto para provar qualquer coisa, inclusive um pressuposto antissemitismo – mas prova suficiente, talvez, para atender à política de pensamento do Guardian e de seus leitores menos críticos e mais subservientes. Nada, na coluna publicada, comprova que Atzmon algum dia tenha sido antissemita: o jornal assume que ele é antissemita, o colunista escreve que ele é antissemita, ninguém comprova ou demonstra coisa alguma. E assassina-se mais uma reputação. (...)

Apesar disso, o Guardian garante seu imprimatur à difamação assinada por Newman, contra Atzmon (apresentado ali como “teórico da conspiração, pingando de desprezo por judeus”), não oferece qualquer prova de coisa alguma e tudo fica por isso mesmo. Jornalismo digno do Pravda, nos dias de glória de Stálin! (...)

O Guardian, como várias outras grandes corporações de imprensa-empresa, recebe fortes investimentos – em termos financeiros e também em termos ideológicos – para dar irrestrito apoio à atual ordem mundial. Em tempos de jornais impressos, o Guardian tinha meios para excluir e silenciar – e hoje, em tempos de internet –, dedica-se a demonizar as vozes da esquerda que se arriscam a questionar um sistema de poder e controle por grandes empresas, poder e controle dos quais o Guardian é uma das peças chave.

Quem leia o Guardian é rapidamente levado a crer que uma meia dúzia de dissidentes dispersos e os intelectuais de esquerda seriam dos principais problemas que nossa sociedade enfrenta – problema comparável, em magnitude, à ação de nossas elites moralmente comprometidas, autoridades policiais corrompidas e sistema financeiro depravado.

Atzmon e algum seu pressuposto antissemitismo seria talvez problema mais grave que a ação do AIPAC (America-Israel Public Affairs Comittee)? (...) Assange e WikiLeaks seriam mais grave ameaça ao futuro do planeta que o presidente Barack Obama dos EUA? Leitores do Guardian são diariamente induzidos a crer que sim.



Notas dos tradutores
[1] 25/9/2011, Andy Newman, “Gilad Atzmon, antisemitism and the left” [Gilad Atzmon, antissemitismo e a esquerda],  (em inglês).
[2] Ver 19/9/2011, Gilad Atzmon, 19/9/2011, “Obama, o estado palestino e a esquizofrenia sionista”, em português; e  Gilad Atzmon, 23/9/2011 “Tragédia Americana”, em português.
[4] Allison Weir, “Israeli Organ Harvesting”, Counterpunch, ed. fim de semana, 29-30/8/2009, (em inglês).

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