terça-feira, 20 de dezembro de 2011

“A farsa democrática” e o desafio de inventar a democracia futura (2/2)


Samir Amin

7/11/2011, Samir Amin سمير أمين, Pambazuka, Voix pan-Africaine pour la liberté et la justice  
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Samir Amin é diretor do Fórum do Terceiro Mundo, associação internacional de intelectuais da África, Ásia e América Latina, com sede em Dakar, Senegal, que visa a fortalecer os esforços intelectuais e os laços entre os países do Terceiro Mundo.

Ante o que chama de “a farsa democrática”, Samir Amin levanta uma questão essencial:
“Assim sendo... Renunciar às eleições? Não.
Mas como associar novas formas de democratização, ricas, inventivas, que dêem às eleições outro uso, diferente do uso que as forças conservadoras previram para elas?”
Para Samir Amin, aí está o desafio que temos de enfrentar.

Leia antes Parte 1/2

O vice-rei Mohamed Ali (1804-1849) e os quedivas [1] até os anos 1870s optaram por uma modernização aberta à adoção de fórmulas de modelos europeus. Não se pode dizer que essa opção fosse uma “ocidentalização” de pacotilha. Os chefes do estado egípcio davam importância à industrialização modernizante do país, não à adoção, unicamente, do modelo de consumo dos europeus. Interiorizaram a assimilação dos modelos europeus associando-os à renovação da cultura nacional e contribuindo para fazê-la mover-se no sentido do laicismo, e a prova está nos seus esforços para apoiar a renovação da língua. Claro que o modelo europeu em questão era o modelo capitalista e sem dúvida não avaliavam a exata medida do caráter imperialista daquele modelo. Mas não se pode recriminá-los por isso. E quando o quediva Ismail proclamou seu objetivo – “fazer do Egito um país europeu” – ultrapassou Ataturk em 50 anos; e planejava associar aquela “europeização” ao renascimento nacional, não à negação desse renascimento.

As insuficiências do Nahda [“Renascimento Árabe”] cultural da época (sua incapacidade para compreender o que fora o Renascimento europeu), e o caráter “passadista” que dominava os conceitos do Nahda, sobre os quais escrevi, não são segredo para ninguém.

Saldo disso é precisamente a visão predominantemente passadista que se imporá ao movimento de renovação nacional no final do século 19. Ofereci uma explicação para isso: a derrota do projeto “modernista” que ocupara o proscênio entre 1800 e 1870 levou o Egito a regredir. E a ideologia da recusa daquele declínio cristalizou-se naquele momento de regressão, com todas as deformações que isso implicava. Os fundadores no novo Partido Nacional (Al hisb al watani), no final do século 19, Mustafá Kamel e Mohamed Farid, escolheram o passadismo como eixo central de seu combate, como se vê, dentre outras evidências, em suas ilusões “otomanistas” (apoiar-se em Istambul contra os ingleses).

A história provaria o erro dessa escolha. A revolução nacional e popular de 1919-1920 não foi conduzida pelo Partido Nacionalista, mas por seu adversário “modernista”, o Partido Wafd. Taha Hussein retoma então o slogan do quediva Ismail: “europeizar o Egito”; apoiar para essa finalidade a nova Universidade e marginalizar o Azhar [uma das principais mesquitas e entidades islâmicas do Egito].

A tendência passadista, herdada do Partido Nacionalista, logo deslizaria para a insignificância. Seu líder – Ahmad Hussein –, nos anos 1930 já não passa de chefe de um partido minúsculo, que pouco depois seria atraído pelo fascismo. Mas a tendência passadista reapareceria fortemente presente, outra vez, entre os oficiais livres que, em 1952, derrubariam o rei.

As ambiguidades do projeto de Nasser são o resultado desse recuo, no debate sobre a natureza do desafio. Nasser tenta associar alguma modernização, que mais uma vez não era de pacotilha, fundada na industrialização, ao apoio a algumas das ilusões passadistas. Pouco importa que o projeto de Nasser inscreva-se – ou tenha suposto que se inscrevesse – numa perspectiva “socialista”, evidentemente desconhecida no século 19. A atração que o passadismo exercia sobre ele continua lá. As opções relacionadas à “modernização do Azhar”, que já critiquei, são prova disso.

O conflito entre as visões “modernistas, universalistas” de uns e as visões “passadistas integralistas” de outros ainda ocupam o proscênio no Egito. As primeiras são defendidas, principalmente, pela esquerda radical (no Egito, de tradição comunista, forte nos anos imediatamente posteriores à II Guerra Mundial), ouvidas pelas classes médias esclarecidas, sindicatos operários e, ainda mais, pelas novas gerações. O passadismo tende mais à direita, com os Irmãos da Fraternidade Muçulmana, que adotou posições extremas na interpretação mais arcaica do Islã (promovida pela Arábia Saudita), o wahabismo.

Não é difícil chamar a atenção para o contraste que há entre essa evolução, que fechou o Egito num impasse, e a via adotada pela China depois da revolução dos Taipings [2], que o maoísmo retomou e aprofundou: a construção do futuro passa pela crítica radical do passado. “A emergência” no mundo moderno e, portanto, a proposição de respostas eficazes ao desafio, inclusive o engajamento na via da democratização – cujas linhas gerais exporei adiante, nesse artigo – são condicionadas pela recusa a fazer do passadismo o eixo central da renovação.

Não é pois por acaso que a China está hoje na vanguarda dos países “emergentes”. Tampouco é acaso que, na região do Oriente Médio, a Turquia, não o Egito, inclua-se no mesmo pelotão. A Turquia – mesmo a do Partido AKP “islâmico” – beneficia-se da ruptura que, ao seu tempo, foi o kemalismo. Mas a diferença entre a China e a Turquia é diferença decisiva: a escolha “modernista” da China já se inscreve numa perspectiva que se deseja “socialista” (e a China está em conflito com o hegemonismo dos EUA, quer dizer, com o imperialismo coletivo da Tríade), perspectiva que veicula oportunidades de progresso, enquanto a “modernidade” da Turquia contemporânea, que não cogita de sair da lógica da globalização contemporânea, é via sem futuro. Seu sucesso é só aparente e provisório.

A associação entre a tendência modernista e a tendência passadista que se encontra em todos os países do grande Sul (as periferias), evidentemente em fórmulas diversas. A confusão produzida por essa associação aparece numa de suas manifestações mais visíveis na profusão de discursos ineptos sobre “as formas do passado que se pretendiam democráticas”, trazidas a nu, sem crítica. A Índia independente faz o elogio dos panchayat [3]; os muçulmanos, da shura; os africanos, da “árvore que fala”, como se essas formas da vida social do passado tivessem algo a ver com os desafios do mundo moderno. A Índia é a maior democracia (por número de eleitores) do planeta? Ou essa democracia eleitoral ainda é e continuará a ser farsa, enquanto não se fizer a crítica radical do sistema de castas (herdado, também ele, do passado), até aboli-lo? A shura continua a ser veículo para pôr em ação a Xaria, interpretada no sentido mais reacionário, inimigo da democracia.

Os povos da América Latina enfrentam hoje esse mesmo problema. Compreende-se facilmente a legitimidade das reivindicações “dos indígenas”, se se sabe o que foi o colonialismo interno ibérico. Alguns discursos indigenistas pouco criticam os passados locais envolvidos na questão. Mas outros, sim, criticam aqueles passados e fazem avançar os conceitos ao associar, de modo radicalmente progressista, as exigências universalistas e o potencial que se acumula na evolução do que se herda do passado. Nesse sentido, os debates bolivianos são, provavelmente, muito ricos. A análise crítica dos discursos indigenistas em questão, feita por François Houtart (El concepto de Sumai Kwasai) acende nossas lanternas. A ambiguidade aparece muito destacada nesse estudo notável, que passa em revista o que me parece ser a provável totalidade dos discursos sobre o tema.

A contribuição – negativa – do passadismo na construção do mundo moderno é de tal ordem, que pode ser detectada não só nos povos das periferias. Na Europa, além de seu quarto noroeste, as burguesias estavam enfraquecidas demais para engajar-se em revoluções como na Inglaterra ou na França. O objetivo “nacional” – particularmente na Alemanha e na Itália, depois também na direção do leste e do sul do continente – serviu como meio de mobilização e de guarda-chuva para compromissos “meio-burgueses/meio-velhos regimes”. O passadismo mobilizado aqui não foi “religioso”, mas “étnico”, fundado numa definição etnocêntrica da nação (na Alemanha) ou numa leitura mitológica da história romana (na Itália). O desastre está aí à vista – o fascismo e o nazismo –, a ilustrar o caráter arquirreacionário, com certeza antidemocrático, do passadismo nessas formas “nacionais”.

A alternativa universalista: a autêntica e plena democratização e a perspectiva socialista

Falarei aqui de democratização, não de democracia. A democracia, reduzida como está nas fórmulas impostas pelos poderes dominantes, já não passa de farsa. A farsa eleitoral produz um parlamento “esgoto” impotente, com o governo como único responsável frente ao FMI e à OMC, quer dizer, frente aos instrumentos dos monopólios da tríade imperialista. A farsa democrática está agora completada pelo “discurso-dos-direitos-do-homemista”, que insiste no respeito ao direito de protestar, sob a estrita condição de que o protesto jamais ponha em questão o poder supremo dos monopólios. E o protesto também já foi criminalizado, associado, como foi, ao “terrorismo”.

A democratização, concebida em contraponto como plena, quer dizer, dizendo respeito a todos os aspectos da vida, inclusive, claro, à gestão da economia, tem de ser processo sem fronteiras e sem limites, produzido pelas lutas e pela imaginação criadora dos povos. A democratização só tem sentido e autenticidade, se mobiliza essas potências inventivas, na perspectiva de construir um estágio mais avançado da civilização humana. Não pode pois vir fechada num formulário (“blue print”) prêt-à-porter. Nem por isso é desnecessário propor algumas linhas diretrizes do movimento, quanto ao rumo geral e para que se definam objetivos estratégicos possíveis, etapa a etapa.

A luta pela democratização é luta. Exige, portanto, mobilização, organização, escolha de ações, visão estratégica, sentido de tática, politização das lutas. Claro que essas formas não podem ser decretadas antes, a partir de dogmas santificados. Mas é indispensável identificá-las e não há como fugir disso. Porque se trata, bem claramente, de forçar o sistema de poder que aí está a recuar, tendo, como objetivo, substituí-lo por outro sistema de poderes. Sem dúvida, deve-se abandonar a fórmula da “revolução” que substitui de vez o poder do capital pelo poder do povo, santificado. São possíveis avanços revolucionários, fundados sobre os avanços de novos poderes, populares, reais, que fazem recuar os que continuarem a defender os princípios que reproduzem a desigualdade. Além do mais, Marx jamais formulou qualquer teoria “da revolução solene e solução definitiva”. Sempre, ao contrário, insistiu na longa transição caracterizada por esse conflito de poderes: os velhos em declínio e os novos em formação.

Abandonar a questão do poder é jogar fora o bebê com a água do banho. Acreditar que a sociedade possa ser transformada sem destruição, ainda que progressista, do sistema do poder que há, é crença da mais completa ingenuidade. Porque os poderes que há, longe de serem “desconstituídos” pela mudança social, são sempre capazes de capturar o novo, submetê-lo, integrá-lo como reforço – não como enfraquecimento – do poder do capital. 

A triste deriva do “ecologismo”, que é hoje campo aberto à expansão do capital, é prova disso. Eludir a questão do poder, é pôr os movimentos numa situação que não lhes permite passar à ofensiva, condená-los a posições defensivas, de resistir às ofensivas dos que têm o poder e privá-los, portanto, da iniciativa. (...)

As lutas sociais e políticas (indissociáveis) poder-se-iam propor-se alguns grandes objetivos estratégicos, que apresentarei (adiante) ao debate teórico e político, confrontado sempre à prática das lutas, aos seus avanços e recuos.

Para começar, reforçar os poderes dos trabalhadores nos seus locais de trabalho, nas suas lutas cotidianas contra o capital. É, digamos, a vocação dos sindicatos. Sim, mas só se os sindicatos forem instrumentos de lutas reais. O que já não são, sobretudo os “grandes sindicatos”, pressupostos “fortes”, porque se assemelham a grandes maiorias entre os trabalhadores envolvidos. Essa força aparente é a verdadeira fraqueza dos sindicatos, porque os sindicatos crêem-se obrigados a “ajustar-se” às reivindicações consensuais, sempre muito, muito modestas. Quem se surpreende por as classes operárias na Alemanha e na Grã-Bretanha (países de “sindicatos fortes”, como se ouve dizer) terem aceitado ajustes drásticos que o capital lhes impôs ao longo dos últimos 30 anos, enquanto os “sindicatos franceses” - minoritários e considerados fracos – conseguiram resistir melhor (ou menos mal?). Essa realidade nos lembra, simplesmente, que as organizações de militantes, sempre minoritárias por definição (a classe não pode ser constituída só de militantes!), conseguem, muito mais que os sindicatos “de massa” (e, portanto, de não militantes), arrastar maiorias para as lutas.

Outro terreno de lutas possíveis para estabelecer poderes novos, são os poderes locais. Nesse domínio, contudo, não farei generalizações rápidas, seja pela afirmação de que a descentralização é sempre um avanço democrático, seja, pelo contrário, pela afirmação de que a centralização é necessária para “mudar o poder”. A descentralização pode ser capturada por “sumidades locais”, em geral tão reacionárias quanto os agentes do poder central. Mas a descentralização também pode, conforme as estratégias postas em ação pelas forças progressistas em luta e as condições locais – favoráveis aqui, desfavoráveis ali –, completar e substituir os avanços na criação de novos poderes populares. A Comuna de Paris incluiu, com seu projeto de federalismo comunal. Os communards sabiam que retomavam, nessa questão, a tradição montagnarde dos Jacobinos de 1793. Porque estes, diferente do que se diz sem pensar (quantas vezes já se ouviu dizer que os “centralistas” jacobinos completaram a obra da Monarquia?!), foram federalistas (como esquecer a Festa da Federação?). A “centralização” foi obra posterior da reação termidoriana, concluída por Bonaparte.

A “descentralização” continua a ser termo dúbio, oposto como absoluto a outro termo absoluto, a “centralização”. Associar um ao outro é desafio que está posto, nos combates pela democratização.

A questão dos poderes múltiplos – locais e centrais – é crucialmente importante nos países “heterogêneos”, ou por alguma razão histórica, ou qualquer outra. Nos países andinos e, mais geralmente, na América dita latina – e que deveria ser chamada de indo-afro-latina – a construção de poderes específicos (e dizer específicos é dizer que gozam de alguma margem de autonomia real) é condição para o renascimento das nações indígenas, renascimento sem o qual a emancipação social não tem sentido algum.

O feminismo e o ecologismo são outros terrenos de conflitos entre as forças sociais engajadas na perspectiva da emancipação global da sociedade e os poderes conservadores ou reformistas dedicados a perpetuar as condições da reprodução capitalista. Não cabe, evidentemente, considerá-los lutas “específicas”, porque as reivindicações aparentemente específicas que essas lutas promovem e a transformação global da sociedade são indissociáveis. Mas nem todos os movimentos feministas e ecologistas entendem assim. 

A articulação das lutas nos diversos terrenos aqui evocados – e em outros – convida a construir formas institucionalizadas da interdependência entre todos os campos. Trata-se, uma vez mais, de mostrar imaginação criadora. Não é necessário esperar que a legislação vigente o permita, para criar sistemas institucionalizados (“informais”, se não sempre “ilegais”), por exemplo, de negociação social permanente e “obrigatória” de fato, empregados/patronato; por exemplo, de controle, que imponha a paridade homem/mulher; por exemplo, que toda decisão importante de investimento (privado ou estatal) seja submetido a avaliação séria, do ponto de vista ecológico.

Avanços reais nas direções propostas aqui criam uma dualidade de poderes – como a que Marx imaginou para a longa transição do socialismo ao comunismo, etapa mais avançada da civilização humana. Esses avanços levariam as “eleições” por sufrágio universal a tomar rumo completamente diferente do previsto na democracia-farsa. Mas aqui, outra vez, só fazem sentido eleições que se realizem depois das vitórias, nunca antes. 

As propostas aqui sugeridas – e muitas outras possíveis – não se inscrevem no discurso dominante sobre “a sociedade civil”. De fato, andam no sentido oposto. O discurso sobre “a sociedade civil”, parente próximo dos delírios do “pós-modernismo” à Negri, é herdeiro direto da tradição da ideologia do consenso à moda dos EUA que sempre o promoveu em todo o planeta, retomado sem crítica por dezenas de milhares de ONGs e por seus representantes que se impõem em grandes números nos Fóruns Sociais. Essa ideologia aceita o regime (vale dizer: o capitalismo dos monopólios), no que tem de essencial – e serve de modo muito útil ao poder do capital. Como que lhe azeita as engrenagens. Assim o próprio capital gera uma falsa “oposição” sem qualquer capacidade para mudar o mundo. Por mais que aquela falsa “oposição” se apresente como agente de mudança, nada jamais muda.

Três conclusões 

1. O Vírus Liberal tem efeitos devastadores. Produziu um “ajuste ideológico” que serve muito bem à expansão capitalista a qual sempre gera mais barbárie. Mas convenceu grandes maiorias – inclusive nas gerações mais novas – de que é hora de “viver no presente”, colher o que o imediato oferece, esquecer o passado, não pensar no futuro, sob o pretexto de que a imaginação utópica engendraria monstros. Convenceu vastas maiorias de que o sistema que há seria compatível com “o desenvolvimento do indivíduo” (o que absolutamente ele não é). Formulações acadêmicas pretensamente “novas” – os “pós”, pós-modernismo, pós-colonialismo, estudos culturais, elucubrações à Negri – garantem alvarás de legitimidade à capitulação do espírito crítico e da imaginação inventiva.

O desarranjo que essa prática de submissão interiorizada implica está, sem dúvida, na origem, dentre outros, da “renovação religiosa” (ressurgimento de interpretações religiosas e pararreligiosas conservadoras e reacionárias, “comunitaristas”, ritualistas. O “monoteísmo” dá o braço, sem problema algum, ao “moneyteísmo” – assunto sobre o qual já escrevi. Excluo evidentemente as interpretações religiosas que mobilizam o sentido que dão à espiritualidade, para legitimar a tomada de posição ao lado das forças sociais que lutam por emancipação. Mas as forças religiosas reacionárias são majoritárias, as forças religiosas progressistas são minoritárias, quando não marginalizadas. Outras formulações ideológicas não menos reacionárias também preenchem o vazio criado pelo vírus liberal: por exemplo, dentre outros, todos os “nacionalismos” e os comunitarismos étnicos e paraétnicos. 

2. A diversidade é, muito felizmente, bela realidade do mundo. Mas elogiar a diversidade ‘em si’ leva a confusões perigosas. 

De minha parte, proponho que se considerem à parte as “diversidades herdadas” (do passado), que, afinal, é o que são, e que só depois de demorado exame crítico poderão ser (ou não) reconhecidas eficazes para o projeto de emancipação. Proponho que não se misturem essas diversidades e outras – que visam a inventar o futuro e lutar pela emancipação. Porque também há diversidades cá do nosso lado, de análises e substratos culturais e ideológicos e propostas de estratégias de luta. 

Na 1a. Internacional, lá estavam Marx, Proudhon, Bakunin. A 5a. Internacional deve fazer da diversidade um trunfo. Imagino que não pode “eliminar”, mas deve reunir e integrar: marxistas de diferentes escolas (inclusive alguns passavelmente “dogmáticos”); reformadores radicais autênticos que, mesmo assim, preferem reforçar objetivos viáveis mais próximos que perspectivas distantes; teólogos da libertação; pensadores e militantes que queiram inscrever as renovações nacionais que promovem, na perspectiva da emancipação universal; feministas e ecologistas que também se inscrevam nessa perspectiva. A condição fundamental que permitirá que esse reagrupamento de combatentes realmente trabalhe pela mesma causa é a tomada de consciência do caráter imperialista do sistema que há. A 5a. Internacional tem de ser muito claramente anti-imperialista. Não se pode satisfazer com “intervenções humanitárias” com as quais os poderes dominantes tentam substituir a solidariedade e o apoio às lutas de libertação dos povos, das nações e dos estados das periferias. Além desse reagrupamento, devem-se buscar alianças amplas com todas as forças e movimentos em luta contra as derivas da democracia-farsa. 

3. Se insisto na dimensão anti-imperialista dos combates a fazer, é porque essa é a condição da possibilidade de construir uma convergência entre as lutas do Norte e do Sul do planeta. Já disse que a fraqueza – pelo mínimo que se diga – da consciência anti-imperialista no Norte é a principal causa da limitação dos avanços que os povos das periferias conseguiram até agora, e mais ainda de seus recuos. 

Construir a perspectiva de convergência das lutas é empreitada difícil. É preciso não subestimar os perigos mortais que há nessas dificuldades. 

No Norte, uma dessas dificuldades é a adesão ainda grande à ideologia do consenso que legitima a farsa democrática, aceitavam graças aos efeitos corruptores do rentismo imperialista. Mesmo assim, a própria ofensiva do capital dos monopólios contra os próprios trabalhadores do Norte, que está em curso, poderia ajudar na direção de os trabalhadores tomarem consciência de que os monopólios imperialistas são inimigos comuns, de todos. Os movimentos que se estão criando e reconstruindo em tempos politizados e organizados conseguirão fazer ver que os monopólios capitalistas têm de ser expropriados e nacionalizados na direção de serem socializados? Se não nos aproximarmos desse ponto de ruptura, o poder de última instância dos monopólios do capitalismo/imperialismo continuará intacto. As derrotas que o Sul poderia infligir àqueles monopólios, fazendo recuar a sangria operada pelo rentismo imperialista só reforçariam as chances de os povos do Sul livrarem-se também de suas cadeias.

Mas no Sul persiste o conflito de expressões da visão do futuro: universalistas ou passadistas? Enquanto esse conflito não se decidir a favor dos primeiros, os povos do Sul só conseguirão obter, em suas lutas de libertação, vitórias frágeis, limitadas e vulneráveis. 

O bloco histórico progressista universalista só ganhará corpo, se se fizerem avanços sérios no Norte e no Sul, nos rumos aqui sugeridos. 

Referências

Para referências que podem ajudar o leitor a refazer o percurso da formação dos conceitos utilizados nesse texto (em francês e inglês), ver Pambazuka.



Notas dos tradutores
[1]  Quediva (do persa “soberano”; خديوي em árabe) era o título de vice-rei conferido pelo Império Otomano ao paxá do Egito.
[2]  Taiping Rebellion - Guerra civil, no sul da China, que durou de 1850 a 1864, liderada por um cristão convertido, Hong Xiuquan, que se apresentava como irmão mais jovem de Jesus Cristo, contra a dinastia Qing, dos Manchu. Houve cerca de 20 milhões de mortos, sobretudo civis, num dos conflitos militares mais mortais de toda a história. Mao Tse Tung, em Política e Tática, fala dessa revolta de Taiping, como um dos primeiros levantes revolucionários heróicos contra um regime feudal corrupto.
[3] Panchayat, lit. “assembleia” (ayat) de “cinco” (panch) anciãos sábios e respeitados, escolhidos e aceitos por comunidades locais. Governos contemporâneos da Índia descentralizaram várias funções administrativas para o nível local, dando poder político a gram panchayats eleitos.

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