domingo, 25 de dezembro de 2011

Há mundo, depois da guerra no Afeganistão!


Em vez de alguma Pax Americana”...

22/12/2011,*MK Bhadrakumar, Indian Punchline
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Talvez soe estranho, mas a primeira vez que viajei até a Amu Darya (terra-de-ninguém) no norte do Afeganistão, viajei a pé. Há 18 anos, ainda não havia embaixada da Índia em Kabul (e o Paquistão, além do mais, não me autorizaria a caminhar pelo Desfiladeiro Khyber).

Meti-me naquela “trilha”, para visitar Rashid Dostum em seu famoso castelo em Shibirghan (província de Jowzjan) – via Tashkent até Termez, na fronteira uzbeque-afegã, entrando por ali no Afeganistão.

Para um diplomata indiano, foi situação absolutamente estranha, atravessar a pé a ponte Termez-Heiraton que cruza a terra-de-ninguém, e chegar ao Afeganistão dos Mujahideen, com os quais a Índia dizia ter laços “civilizacionais”.

A ponte, de montantes de aço, foi construída pelos soviéticos e era então, de fato, uma ponte ferroviária que acabava no “porto” afegão de Heiraton. Termez, claro, era imensa base militar, então a maior base soviética na Ásia Central, e coordenava o fluxo de suprimentos para as tropas soviéticas no Afeganistão. O próprio general Boris Gromov também atravessou a pé aquela ponte, numa ventosa manhã de inverno, à frente, pessoalmente, do último destacamento soviético que deixou o Afeganistão em 1989. Tecnicamente falando, portanto, o Afeganistão não é exatamente debutante, no fascinante mundo das ferrovias. 

Mesmo assim, a abertura, hoje, da ferrovia que liga Heiraton a Mazar-i-Sharif é sempre mostrada com certa dose de mal disfarçada emoção.

O sistema ferroviário promete abrir um novo mundo ao mundo afegão. Quanto a isso, é o mesmo em toda parte, incluída a Índia Britânica. Da chegada do sistema ferroviário fazem-se as lendas. (...)

Imaginem um afegão de Bamyan que pela primeira vez embarca num trem, com suas esposas e muitos filhos e filhas pequenos: o mesmo êxtase sem palavras, boquiaberto, de quando ele, pela primeira vez, vê o mar e as ondas lambendo as praias. Pois a geopolítica do sistema ferroviário afegão também será assim, emocionante, quase indescritível. Para muitos observadores, a nova linha em Mazar-i-Sharif é mais um dente na engrenagem da guerra do Afeganistão, que facilitará o transporte, mais rápido e mais barato, de suprimentos para as tropas da OTAN, via Termez.

Mas por trás de tudo isso descortina-se um panorama que mudará fenomenalmente a face do Afeganistão. 

Falo sobre os planos em desenvolvimento, para a implantação de uma ampla malha ferroviária regional, na qual o Afeganistão pode vir a operar como principal centro de irradiação. 
Rotas da seda

















Importante, quanto a isso, é que esse é o sistema ferroviário que a China planeja para todo o Afeganistão, destinado a alterar todo o tabuleiro regional incluído na Rota da Seda (a tradicional chinesa, não a “nova”, com a qual sonham os EUA). A linha que os chineses projetaram, já em construção em vários segmentos, parte de Xinjiang e entra no Afeganistão pelo Quirguistão e Tadjiquistão. Dali podem partir dois grandes ramais, levando, um ao Irã, o outro ao Paquistão.  

Para a China, a estrada de ferro abre passagem estratégica, que a leva ao Golfo Pérsico e ao Sul da Ásia, contornando o Estreito de Malacca. Se o Paquistão jogar suas cartas com sabedoria – e já me parece bem claro que, afinal, o Paquistão começou a entender a quintessência do grande jogo e está sabendo encadear suas jogadas – o país terá papel chave a desempenhar nos ambiciosíssimos planos chineses de expandir a Rota da Seda na direção dos portos de Karachi e Gwadar. Sim. Os presidentes do Quirguistão e do Tadjiquistão, que se reuniram no início dessa semana em Moscou, trocaram notas sobre providências para acelerar a construção da linha ferroviária que ligará China e Afeganistão.

O quadro que está emergindo naquela região já olha para muito além da guerra do Afeganistão. O que acontecerá nessa região? 

Em vez de Pax Americana, tudo leva a crer que se constrói por aqui, cada vez mais claramente, um acordo regional entre Rússia, China, Paquistão e Irã, como base que garantirá estabilidade e segurança para o Afeganistão. 

Será preciso ainda um “salto de fé”, um movimento de “conversão espiritual”, para que os especialistas indianos entendam e assimilem essa nova realidade geopolítica, que se vai construindo lentamente, mas inexoravelmente.

[No Brasil, precisamos muito mais, até, que alguma “conversão espiritual”; os especialistas brasileiros – pelo menos, com certeza, todos os que falam e escrevem nos jornais do Grupo GAFE (Globo/Abril/FSP/Estadão) – ainda não atravessaram, sequer, el Rio Grande, e, na cabeça deles, a única ponte que existe no planeta é a que une as cidades cenográficas da Rede Globo e da Bolsa de Valores de NY, passando pelas agências norte-americanas de “notícias” & propaganda (NTs)].

Assim sendo, países vizinhos da Índia, como Sri Lanka ou Bangladesh estão-se reposicionando para “para outro jogo de futebol”. O Sri Lanka já se aproxima, mesmo, de converter-se em mais um país de renda média, na Ásia.  

*MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

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