domingo, 15 de janeiro de 2012

Jacques Rancière: “Criticar a sociedade é culpar as vítimas”


15/1/2012, Entrevista de Jacques Rancière, Paula Corroto, Publico, Espanha
(Dica da Prof. Ivana Bentes, pelo Twitter)
Traduzidoe enviadopelo Coletivo da Vila Vudu

Rancière, em dezembro de 2010, em visita à Universidade Complutense
(foto Gabriel Pecot)
Discípulo de Louis Althusser, Jacques Rancière (Argel, 1940) é dos filósofos contemporâneos que mais refletiu sobre a ideologia, a luta de classes e a igualdade. Participou do Maio de 68 e, com Louis Althusser, escreveu Para ler “O Capital” (1955).

Agora, a editora Clave Intelectual (Espanha) acaba de publicar Momentos políticos, seleção dos artigos que escreveu entre 1977 e 2009, nos quais analisa questões diversas, como a guerra do Iraque, a contrarrevolução intelectual que transformou a sociedade e a situação das ideias comunistas. Rancière concedeu essa entrevista por e-mail (traduzida do francês ao espanhol por Marisa Pérez Colina).

Estamos vivendo “um momento político” na Europa? Como o senhor descreveria esse momento?

“Na Europa, todos os governos estão aplicando o mesmo programa de destruição do público”

Preferiria dizer que estão postas as condições para um momento assim, na medida em que estamos numa situação em que se vê mais evidente, a cada dia, que os estados nacionais atuam só como intermediários, para impor aos povos as vontades de um poder interestatal, o qual, por sua vez depende estreitamente dos poderes financeiros. 

Mais ou menos em todas as partes da Europa, os governos – das direitas e das esquerdas – aplicam o mesmo programa de destruição sistemática de todas as formas de solidariedade e proteção social que garantiam um mínimo de igualdade no tecido social. Mais ou menos em todas as partes, portanto, revela-se a brutal oposição entre uma pequena oligarquia de políticos e financistas, e a massa do povo submetida a uma precariedade sistemática e despossuída de qualquer poder para decidir – como se viu espetacularmente claro no caso do referendo previsto e imediatamente anulado na Grécia. Portanto estão dadas, sem dúvida, as condições de um momento político, quer dizer, de um cenário de manifestação do povo ante os aparelhos de dominação.

Mas para que esse momento exista, não basta que haja uma circunstância: ainda assim é necessário que aquela circunstância seja vista e identificada por forças capazes de convertê-la em demonstração, ao mesmo tempo intelectual e material, e de converter a demonstração em palanque capaz de alterar o equilíbrio de forças, modificando a própria paisagem do perceptível e do pensável.

O que o senhor pensa do caso espanhol?

A Europa apresenta situações muito diferentes. A Espanha é, com certeza, o país no qual a primeira condição cumpriu-se de forma mais evidente: o Movimento 15-M já expôs, manifestada muito claramente, a distância entre um poder real do povo e algumas instituições chamadas democráticas, mas de fato já completamente entregues à oligarquia financeira internacional. 

Resta a segunda condição: a capacidade para transformar um movimento de protesto em força autônoma, não só independente do sistema estatal e representativo, mas também que seja capaz de arrancar a direção da vida pública das mãos daquele sistema. Na maior parte dos países europeus estamos ainda distantes da primeira condição.

“Para que a política renasça, é preciso que haja organizações coletivas com objetivos e meios” 

Os movimentos 15-M e Occupy Wall Street são política?

Não há dúvida de que esses movimentos respondem à ideia mais fundamental da política: a política como o poder próprio dos que por nenhuma razão são destinados ao exercício do poder; a política como manifestação de uma capacidade que qualquer um tem. E esses movimentos materializaram esse poder de modo que está de acordo com essa ideia fundamental: afirmando o poder do povo mediante a subversão da distribuição normal dos espaços. 

Normalmente, há espaços como as ruas, destinados à circulação de indivíduos e de bens; e há espaços públicos, como os parlamentos ou os ministérios, destinados à vida pública e onde se discutem assuntos gerais. A política sempre se manifesta quando há distorção nessa lógica.

O que se deveria fazer com os partidos atuais?

“Os que hoje se manifestam já não têm nenhum horizonte que dê validade ao seu combate. São só indignados” 

Os partidos políticos que conhecemos hoje são aparelhos destinados exclusivamente a tomar o poder. Qualquer renascimento da política exige que haja coletivos que escapem à lógica de tomar o poder, que definam seus objetivos e seus meios de ação independentes das agendas dos Estados. Ser independente das agendas dos Estados não significa desinteressar-se delas, como se as agendas dos Estados não existissem. Ser independente significa construir uma dinâmica própria, espaços de discussão e outras formas de circulação da informação, motivos e formas de ação dirigidos, em primeiro lutar, ao desenvolvimento de um poder autônomo de pensar e de atuar.

Em maio de 68, discutiam-se as ideias de Marx. Mas não parece haver filósofos no 15-M ou em OWS.

Até onde sei, os dois movimentos interessam-se pela filosofia. E é preciso lembrar a ordem que os ocupantes da Sorbonne, em maio de 68, deram a um filósofo que acorrera, em apoio à causa dos estudantes: “Sartre, seja breve”.

Quando uma inteligência coletiva afirma-se no movimento, é hora de prescindir de heróis filosóficos que se ponham a dar explicações ou fornecer palavras-de-ordem. Não se trata, de fato, de presença ou ausência de filósofos. Trata-se de haver ou de não haver no movimento uma visão do mundo que estruture naturalmente a ação coletiva. Em maio de 68, embora o movimento não tivesse a forma canônica da política marxista, a explicação marxista do mundo funcionava como horizonte do movimento: embora não fossem marxistas, os militantes de maio-68 situavam sua ação sob o marco de uma visão da história na qual o sistema capitalista teria de desaparecer sob os golpes de seu inimigo, a classe operária organizada. 

Os manifestantes de hoje não têm nem chão nem horizonte que deem validade histórica à sua luta. São, em primeiro lugar, indignados, gente que rejeita a ordem existente, sem que se possam considerar agentes de um processo histórico. E isso é denunciado por alguns, que se aproveitam, interessadamente, e denunciam seu idealismo ou seu moralismo.

“A democracia não é um forma de Estado. É um poder do povo, em tensão permanente com o Estado” 

O senhor escreveu que, nos últimos 30 anos, vivemos uma contrarrevolução. Essa situação mudou com os recentes movimentos populares?

Com certeza, alguma coisa mudou desde a Primavera Árabe e os movimentos dos indignados. Interrompeu-se a lógica da resignação e a necessidade histórica, pregada pelos nossos governos e defendida pela opinião dos intelectuais. 

Desde o colapso do sistema soviético, o discurso intelectual sempre contribuiu para apoiar, hipocritamente, os esforços dos poderes estatais e financeiros para quebrar as estruturas coletivas que resistiam ao poder do mercado. Esse discurso acabou por impor a ideia de que a rebelião seria não só inútil, como também prejudicial. 

Seja qual for o futuro dos movimentos recentes, eles, pelo menos, já puseram sob suspeita essa fatalidade pressuposta. 

Os movimentos já fizeram ver que não somos obrigados a vê-los como crise das nossas sociedades, mas como momento extremo da ofensiva destinada a impor em todas as partes da vida as formas mais brutais de exploração; e que é possível, para os 99%, fazer ouvir a sua própria voz contra aquela ofensiva.

O que podemos fazer para recuperar os valores democráticos? 

“O poder dos cidadãos é o poder de agir por eles mesmos, de ter força autônoma”

Para começar, é preciso decidir o que entendemos por democracia. Na Europa nos habituamos a identificar democracia e o sistema de dupla mão entre as instituições representativas e as instituições do livre mercado. 

Hoje, esse idílio já é coisa do passado: o livre mercado se mostra cada vez mais como força de constrição que transforma as instituições representativas em simples agentes da vontade do mercado e reduz a liberdade de eleição dos cidadãos às variantes de uma mesma lógica fundamental. 

Nesta situação, ou bem denunciamos a própria ideia de democracia como uma ilusão, ou bem repensamos completamente o que significa democracia, no sentido forte do termo. A democracia não é, para começar, uma forma de Estado. É, em primeiro lugar, a realidade de um poder do povo, que não pode jamais coincidir com uma forma de Estado. Sempre haverá tensão entre a democracia como exercício de um poder compartido para pensar e agir, e o Estado, cujo princípio é apropriar-se desse poder. Evidentemente, os estados justificam essa apropriação, argumentando com a complexidade dos problemas, com a necessidade de pensar no longo prazo, etc. Mas, para dizer a verdade, os políticos estão sempre muito mais presos ao presente.

Recuperar os valores da democracia é, em primeiro lugar, reafirmar a existência de uma capacidade para julgar e decidir, que é capacidade de todos, contra essa monopolização. É também reafirmar a necessidade de que essa capacidade exerça-se mediante instituições próprias, distintas das instituições do Estado. A primeira virtude democrática é essa virtude de confiar na capacidade de todos e de qualquer um.

No prólogo de seu livro, o senhor critica políticos e intelectuais. Mas qual é a responsabilidade dos cidadãos na situação atual e na crise econômica?

Para caracterizar os fenômenos do nosso tempo é preciso, em primeiro lugar, considerar o conceito de crise. 

Fala-se de crise da sociedade, de crise da democracia, etc. Assim se consegue culpar as vítimas, pela situação atual. 

Ora, a situação que vivemos hoje não é resultado de alguma doença da civilização! É resultado da violência com que os senhores do mundo dirigem hoje a ofensiva contra todos os povos. O grande erro dos cidadãos é o de sempre: deixar-se roubar, deixar-se despossuir do poder que os cidadãos têm.

Mas o poder dos cidadãos é, sobretudo, o poder para agir por eles mesmos, o poder para constituir-se em força autônoma. A cidadania não é uma prerrogativa que nos adviria de estarmos contados no censo populacional ou de estarmos alistados como eleitores num país. A cidadania é, sobretudo, uma prática que não pode ser delegada. Por tanto, é preciso opor claramente essa prática, esse exercício da ação cidadã, contra os discursos moralizantes que se ouvem por todos os lados, e que dizem que os cidadãos seriam responsáveis pela crise da democracia.

Esses discursos lastimam o desinteresse dos cidadãos pela vida pública e culpam os cidadãos pela deriva individualista dos consumidores. Esses supostos ‘chamamentos’ dos cidadãos ‘à responsabilidade’ só têm, de fato, um efeito: conseguem culpar os cidadãos, para prendê-los mais facilmente no jogo institucional que consiste apenas em selecionar, dentre os membros da classe dirigente, os que aceitem que lhes roubem a potência para agir.

“A cultura não tem qualquer papel particular como entidade global” 

O senhor também é apaixonado por cinema e literatura. Quais as consequências da crise, para a cultura? 

A situação atual é uma crise dos valores do comum, na qual o poder do capital sobre a sociedade manifesta-se no individualismo consumista. Nesse quadro, a cultura é, ao mesmo tempo, tanto o tecido da experiência do comum, que é ameaçado, invadido pelos valores mercantis, como é, também, a instância encarregada de remediar os efeitos dessa invasão, de opor as exigências da autonomia da arte, contra a estetização comercial. Ou de voltar a tecer as esfarrapadas redes do vínculo social.

Do meu ponto de vista, o poder capitalista exerce-se, em primeiro lugar, de cima para baixo, mediante políticas estatais que, sob o pretexto de lutar contra o egoísmo dos trabalhadores privilegiados e dos democratas individualistas, impõe, em nome da crise, um programa de submissão de todos os aspectos da vida comum às leis do mercado. 

Resultado disso é que hoje já não há qualquer papel que se possa atribuir à cultura como entidade global. O cenário está hoje dominado, em grande medida, pelas celebrações culturais oficiais e por discursos pressupostos “críticos”, mas todos, de fato, submetidos à lógica oficial.

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