segunda-feira, 11 de junho de 2012

“Nenhuma revolução nasce do governo” (2/2)


Alí Rodriguez Araque


Mario Antonio Santucho, Revista Crisis, n.5, jun-jul. 2011
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Leia antes: 10/6/2012, redecastorphoto em: “Nenhuma revolução nasce do governo” (1/2)

Entrevista com: Alí Rodríguez Araque, Ministro de Energia Elétrica da Venezuela (2/2)

Mario Antonio Santucho
Crisis: E que papel desempenha o Brasil, nesse esquema? 

Alí Rodríguez: O Brasil é um grande consumidor que pouco a pouco se foi convertendo, felizmente, em grande produtor. Ainda não está na OPEP, mas a Venezuela já o está convidando. Porque só na medida em que se possa regular o mercado petroleiro mundial, será possível manter os preços num nível adequado, que não implique carga pesada demais para os consumidores, sobretudo os países pobres. Busca-se um ponto de equilíbrio entre os dois interesses, coisa muito difícil, porque os capitalistas são de fato muito vorazes, o apetite deles não tem limites.

Crisis: Quando o Brasil acorda com os EUA priorizar a produção do etanol, para energia, por exemplo, influi nessa discussão no plano global?

Alí Rodríguez: Influi, na medida em que afeta o aumento dos preços dos alimentos, mas não no cenário do petróleo mundial. O maior competidor potencial do petróleo é o hidrogênio, recurso natural muitíssimo abundante e não contaminante. Mas os custos altíssimos ainda não permitem que se o veja como concorrente. Veja o que acontece com a energia nuclear.

O duplo poder 

O tempo de Alí Rodríguez move-se ao ritmo da crise elétrica. Nossa conversa avança aos saltos e termina de repente. Um assessor pede desculpas pela interrupção, e informa o ministro sobre a queda de uma linha de transmissão que deixou províncias inteiras na escuridão. O ministro faz algumas perguntas curtas, diagnostica a origem da falha, manda informar a presidência e redigir uma declaração oficial. Bom momento para perguntar-lhe sobre os paradoxos que marcam o “socialismo século 21”, especialmente sobre a tentativa para criar de cima para baixo o que, naturalmente, deveria emergir de baixo para cima. É incongruência não se resolve no plano da lógica e impõe limites bem definidos à experimentação.

Alí Rodríguez: “Os revolucionários devem precaver-se para não ser dogmaticamente contra a política porque a política, como todos os fatos humanos é dinâmica e sempre dominada por muitos fatores. Se você, dogmatiza a luta armada, por exemplo, você vira, no melhor caso, um quisto que pode crescer, mas não avança, que não encontra correspondente no movimento social, um mal crônico que não gera efeitos na sociedade. Nosso processo, na Venezuela, é inédito, sobretudo pelos êxitos. É tentativa, pela via eleitoral, como também aconteceu no Chile entre 1970 e 1973, mas aqui o movimento foi vitorioso nos confrontos que vieram depois das eleições, como aconteceu no golpe de estado de 2002 e no golpe das petroleiras em dezembro daquele ano.

Com a derrota do golpe militar, a oligarquia venezuelana perdeu o poder que tinha no seio das forças armadas, mas continuava a manter o grande poder econômico da PDVSA. Derrotados no golpe das petroleiras, perderam também esse poder. Mas ainda há confronto muito agudo no plano político. Por isso temos de renovar constantemente as nossas posições, porque, se você para no jogo político, você vira passado, porque o processo nunca para de mover-se.

Crisis: Conseguiram avançar na transformação produtiva do país? 

Alí Rodríguez: Um dos principais problemas que surgiram, como consequência do processo de que acabo de falar, é que a produção agrícola foi duramente afetada, o que provocou violenta migração, do campo para a cidade. Hoje, mais de 90% da população concentra-se nas cidades e há vastas áreas de território que estão desabitadas. O desenvolvimento econômico do país, entre finais dos anos 30s e começo dos 70s, foi determinado pelo violento processo de urbanização e pela demanda decorrente, por moradias. As cidades chegaram à saturação e em seguida ao declínio, que ainda não conseguimos interromper. Durante muito tempo falou-se dos limites do pequeno mercado interno, mas sem jamais explicar por que as coisas são como são.

Crisis: E como é possível sair dessa espiral que parece não ter freio?

Alí Rodríguez: Temos dois grandes assuntos a abordar: por um lado, o desenvolvimento da produção de alimentos, não só pela soberania alimentar, que já bastaria e explica a necessidade desse desenvolvimento, mas também porque, só na medida em que o campo converta-se em fator produtivo que gere demandas industriais que possam ser internamente satisfeitas, haverá desenvolvimento industrial na Venezuela. Por outro lado, uma segunda fase de reurbanização do país, questão que estamos encarando exatamente agora, com a Misión Vivienda [Missão Moradia]. A ideia é que a economia nacional acomode-se de modo a poder satisfazer as grandes demandas a serem geradas pelo objetivo de construir dois milhões de moradias em apenas 4 ou 5 anos.

Crisis: Para os governos de esquerda da região, não parece ser operar transformações profundas na sociedade. Como fazer para não se deixar assimilar pelos mecanismos do sistema político tradicional e pelas lógicas burocráticas estatais?

Alí Rodríguez: Em 98 nós assumimos o governo, mas não o poder político. São duas coisas diferentes. Nenhuma revolução nasce do governo. Por isso ainda nem se pode dizer que essa revolução na Venezuela seja irreversível. Para que haja hegemonia, é preciso desenvolver o poder popular organizado, os Conselhos Comunais e as Comunas têm de assumir cada vez mais espaços de poder, e realmente exercitar o comando, conduzir a revolução. Se não for assim, essa revolução fracassa. Porque no nosso caso, também há um duplo poder. O Estado que temos não é o Estado para fazer a revolução, nem é ainda expressão das mudanças no país. O Estado que temos é Estado burocrático, pesado, é um obstáculo às mudanças revolucionárias na Venezuela. Só quando o povo organizado assumir o poder e governar, e comandar, e assumir a hegemonia política no país, será possível dizer que a revolução é irreversível.

Reflexos condicionados

Erika Farías
A deputada Erika Farías teve a seu cargo a responsabilidade de dar forma ao Ministério do Poder Popular. No dia seguinte, depois de entrevistar o ministro Alí, visitamos a deputada, para conhecer melhor os personagens de um Estado que se diz revolucionário, mas que só confia em bases populares auto-organizadas.

Erika conta que a construção dos Conselhos Comunais começou em 2006, com o objetivo de canalizar recursos diretamente do Executivo Nacional para os Conselhos Locais, sem a intermediação das estruturas provinciais e municipais. 

Erika Farias: Estamos falando de uma experiência que vai completar cinco anos, uma experiência recente. Não é perfeita, é claro, mas, dentro do que temos, é uma instância revolucionária. No plano nacional, há 41 mil equipes de trabalho, espalhadas por praticamente todo o país. Desde o início, criou-se um fundo de recursos que em quatro anos de governo já administrou mais de 10 bilhões de bolívares fuertes, o equivalente a mais de dois bilhões de dólares. Com o tempo, começaram a ser transferidos não só recursos econômicos, mas também técnicos, máquinas, formação, experiências de caráter científico que permitiu que os Conselhos melhorassem o trabalho e começassem a pagar a dívida social que herdamos da IV República.

Houve avanços, houve tempos de ritmo mais lento, mas a ideia de que quem tem de assumir o poder é o Poder Popular nunca saiu de nossa agenda. Pode-se dizer que nossa debilidade é a falta de partidos revolucionários. Por isso começamos e estimular a organização popular a partir do governo, o que para nós não é defeito, mas experiência que nos toca e da qual podemos aprender. Temos, isso sim, de tomar cuidado para não levar ao povo as mesmas misérias do institucionalismo burguês, porque, sim, ainda há muito disso, na Venezuela.

Crisis: Um ponto básico do pensamento revolucionário é que é impossível mudar o Estado de dentro para fora. Contudo, o que se vê na Venezuela é um governo que se propõe como motor da transformação e como artífice a partir do qual o povo está sendo mobilizado.

Erika (risos): Aí há um detalhe “engendrado”, mas, veja bem: como organizar a implosão do Estado, se não há base popular organizada? A Revolução começou com um levante militar que falhou, depois de o levante popular de 27/2/1989 também ter fracassado. O que podíamos fazer? Durante 1987, houve grande debate, para que assumíssemos a via eleitoral. A maioria adotamos essa via, o Comandante venceu as eleições e começamos, sim, a partir do Estado. O que fizemos nesses 12 anos? Devolver ao povo o poder do conhecimento, por a economia a serviço do povo, recuperar os instrumentos de governo. Uma das coisas que nós queríamos superar com a reforma constitucional era a divisão político-territorial. Por causa dela, perdemos o plebiscito de dezembro de 2007. Nos propúnhamos a modificar a organização municipal, paroquial e estatal, para que o povo começasse a exercer suas novas formas de governo. Mas não conseguimos. Fomos impedidos pela própria força do Estado que não quer morrer. 

Vê-se assim que temos uma limitação original, no fato de que a revolução na Venezuela está sendo empurrada adiante pelo Estado... Mas chegará o momento em que as próprias pessoas dirão “é hora de superar esses instrumentos e instituições velhas”. 

Em certo sentido, já está acontecendo. Apenas que nós não podemos meter os pés pelas mãos. Há instituições do Estado que ainda existem, mesmo que sem terem sentido, mas nem por isso podemos atropelá-las. Você pergunta se há uma burocracia socialista. Acho que sim, e que se manifesta dentro das próprias instituições da Revolução, inclusive na população, porque administrar dinheiro e recursos gera burocracias. Há casos nos quais se repete o que já se conhece e outros nos quais aparece algo de novo. E assim vamos andando. Não idealizamos o processo, nem temos com ele uma relação idílica. Sabemos que há problemas e não temos medo deles. Mas temos de entender que não existe socialismo num país só. Há situações na região, há coisas de que temos de cuidar, relações que temos de manter, níveis que temos de ir harmonizando. E com calma.

Crisis: Nesse contexto complexo, como você resumiria a contribuição específica das instâncias do Poder Popular?

Erika: Os Conselhos nos ajudaram muito a avançar no plano ‘micro’, porque sempre, aqui na Venezuela, se veem só os grandes problemas, mas há os problemas pequenos, quotidianos, os quais, se não são enfrentados, acabam por desgastar a força popular. São pequenos problemas dos quais o governo não se ocupa porque não os vê, não tem com vê-los, embora deva esforçar-se. Mas há núcleos de governo popular que veem os problemas porque sofrem os problemas e podem resolvê-los por seu próprio esforço.

Nas instituições há burocracias, não burocratas

Além do enquadramento projetado pelo governo bolivariano, embora se sintam partícipes entusiastas do processo revolucionário, há quantidade enorme de coletivos, que tentam perfurar as onipresentes calosidades burocráticas. São os novos protagonistas sociais que, nos momentos de perigo, sempre fizeram a diferença. São inimigos da corrupção, mas não pelos parâmetros moralistas da oposição anti-Chávez. Para eles, a corrupção é tendência institucional permanente que tende a sufocá-los, dando forma ou privada ou estatal aos produtos da luta e da criatividade dos muitos.

Máster [Jorney Madriz] integra a rede Hip Hop Revolución [1], rede nacional de RAPeiros fundada há seis anos.

Máster e seu grupo de"rapeiros"
Máster: É preciso nos esforçar, para não acabar absorvidos na instituição. Não esqueça que se pode estar num estado revolucionário, mas o Estado não foi inventado pela revolução. É negócio inventado por outros, estruturas completamente verticais, e a revolução ainda não conseguiu quebrar a dinâmica do Estado. Ao mesmo tempo em que nós revolucionamos aquelas estruturas, elas também em parte nos vão absorvendo. Há companheiros que querem fazer mudanças de lá para cá, do Estado para cá, e acabam pondo a revolução abaixo da estrutura. Essa estrutura asfixia nosso processo, afoga o nosso modo de trabalhar, o modo como fazemos música, como nos reunimos. E não é porque o Estado seja bom ou ruim. É porque essa estrutura é alheia, nada tem a ver conosco. Essa é a luta que sempre há, sempre que trabalhamos com o Estado – e não quero ofender os funcionários do Estado, mas eles têm de aceitar a verdade. 

Picky Figueroa é um dos fundadores do núcleo endógeno “Tiuna, el fuerte”, espaço de experimentação política e cultural onde se reúnem os chamos e malandros do bairro El Valle, na periferia de Caracas, e dos bairros com mais tradição combativa.

Picky Figueroa: Há corrupção, coño, abuso de poder, é uma luta, a burocracia dá um trabalho tremendo. Atrasa todos os processos, não vê, não entendem nada. Chávez faz o possível para enfraquecer o Estado e cria organizações alternativas para que o dinheiro chegue ao povo. Entra a burocracia e cria formulários a preencher e planilhas. Temem que nos transformemos em ilha pirata, ou corrente armada. Porque Chávez também está na luta eleitoral; por isso cria exércitos, digamos assim, cria organizações gigantes. As Missões, coño, são soluções alternativas aos ministérios que não respondem nunca, mas também são exércitos de gente com necessidades comuns e, ao mesmo tempo, votos.”

Máster: Vou ser mais claro. Nós vemos o Comandante como o líder de um processo, mas, ao mesmo tempo, também o vemos como companheiro infiltrado no Estado. Chávez é um dos nossos, que se infiltrou numa estrutura perigosíssima, que, cada dia mais, trabalha para enforcá-lo. Nós temos de continuar ajudando Chávez, sempre e enquanto continue falando como nós falamos e fazendo as coisas que nós faríamos se estivéssemos no lugar dele”. 

A seguir, Máster chama os companheiros e nos convida a ouvir um dos seus RAPs [2], gravado no último disco:

Incapaces con disfraces entorpecen
pasos firmes
y ante ninguno de ellos
yo tengo por qué rendirme.
Llegará el día que mi corazón no lata
y ya no eviten mi opinión
con excusas baratas.
Y el interés que te delata:
tú, el de la corbata
si fuera tuya no gastarías tanta plata.
Y eso sólo en viáticos de menesteres,
justifique el sueldo:
¡ve, anda y cumple tus deberes!
Tú llenándote de enseres
y dándote buena vida
con aire acondicionado
cinco pisos arriba
donde el sol te pega a ti
pero no ves para la salida.
Asómate, ve la cola,
puras caras decaídas.
¿Dónde está la solución
a situaciones tan precarias
si en Información
no atiende ni la secretaria?
Necesaria es la acción
que nos rectifique
donde el sujeto aplique
el verbo que predique.
No más retraso en indisposiciones
no más burócratas en las instituciones
no a la mentira que intoxica
dentro de sus corazones
y mientras existan
ellos sabrán de mí. 



Nota dos tradutores

[1] Sobre Máster ver, logo abaixo, trecho de “Inside the Revolution: A Journey into the Heart of Venezuela” (documentário, dir. Pablo Navarrete, 2009)  e “Hip Hop Revolución”: On Culture and Revolution in Venezuela, 7/6/2012, CeaseFire.


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