sábado, 30 de junho de 2012

Pepe Escobar: “Dançando miudinho. Como se fosse... 1997”


29/6/2012, Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Pepe Escobar
HONG KONG. Aconteceu há 15 anos: o dia em que os britânicos devolveram Hong Kong à China. [1] O general China fez os britânicos dançarem miudinho. Recuperar Hong Kong foi um dos pilares da estratégia de “cruzar o rio sentindo as pedras” de Deng Xiaoping, o Pequeno Timoneiro. Regra n. 1, “enriquecer é glorioso”. Depois, desenvolver as zonas econômicas especiais. Recuperar Hong Kong, tirando-a dos britânicos. Depois, um dia, anexar Taiwan. E, talvez lá por 2040, chegar a alguma variante de democracia parlamentar à europeia.

Tempos inebriantes, aqueles. Apenas fracos rumores sobre uma possível crise financeira na Ásia. Na China continental, a mídia relembrava as “humilhações” do passado – com direito a promoção pesada de um filme arrasa-quarteirões que contaria a verdade sobre as Guerras do Ópio. Nos jornais, na ilha de Hong Kong, reinava medo sinistro. E se o Exército de Libertação do Povo [orig. People's Liberation Army (PLA), o exército da República Popular da China] cruzar a fronteira à meia noite, numa blitzkrieg e militarizar todos os shopping-centers em Kowloon? Seremos todos doutrinados até nos transformarem em comunistas-modelo?

Deng Xiaoping
Era onde todos os correspondentes estrangeiros tinham de estar. O Clube dos Correspondentes Estrangeiros fervilhava como perpétuo concerto de rock. Na loja Shanghai Tang, o hit era um relógio Deng, de pulso. Os dias passavam em perene agitação, na luta para conseguir entrevistas e aferir a iminência do apocalipse, na opinião de residentes e analistas. À noite, as suarentas festas no Club 1997, em Lan Kwai Fong. Depois, era arrastar a ressaca de volta para o hotel e escrever matéria suficientemente densa para encher duas páginas de jornal por dia.

No final, tudo transcorreu numa normalidade que Deng apreciaria. [2] Chris Patten – o último governador britânico – partiu, num anticlímax. O Império Britânico era passado. O Exército chinês não invadiu a ilha. Festa monstro, no Club 1997. Dia seguinte, ressaca monstro e tudo, começava a verdadeira celebração. Meti-me num avião rumo à China.

Impensável indizível 

Mal sabia eu que a crise financeira asiática acabava de eclodir – com desvalorização monstro do Baht tailandês. Bom. Ainda dia 1º de junho, muitos de nós teríamos previsto alguma coisa, mas seria problema pequeno – mas ninguém preveria, nem ninguém previu, o tsunami financeiro que logo chegaria.

Robert Plant (Led Zeppelin)
Eu tinha planos de mergulhar na China profunda – nas entranhas da besta que, agora, mandava em Hong Kong. Robert Plant viajou no mesmo voo para Xian. Sim, ele, o Robert Plant (guitarrista do Led Zeppelin [3])menos Jimmy Page. Resisti à tentação de falar com ele, ante as barreiras abertas para a Caxemira. Mas acabou que estávamos no mesmo hotel em Xian – e cruzávamos no café da manhã. Ele viajava com o filho e o secretário. E, sim – estávamos na mesma viagem. Nada de Estrada 66 – mas a estrada mãe de todas as estradas. 

Sempre fui fanático pela Rota da Seda. A “Estrada da Seda” não é só o grande portão aberto para a Eurásia – de desertos letais como o Taklamakan a picos de montanhas nevadas – mas também ondas e ondas de história cultural que liga a Ásia à Europa. São impérios esquecidos como os Sogdianos, cidades de fábula como Merv, Bukhara e Samarcanda, oásis de fábula como Kashgar. Não é “uma” estrada, mas um labirinto de “estradas” – cujos braços alcançam o Afeganistão e o Tibete.

Tinha de começar pelo começo, em Xian, ex-Chang'an – embora muita seda chinesa viesse ainda mais do sul. Xian foi capital da China durante a dinastia Han, quando Roma dava a alma pela seda da China. E foi capital outra vez na dinastia Tang – quando a conexão com a Índia solidificou a Rota da China.

As galerias de Hong Kong estavam cheias de cópias de figuras Tang de terracota, como a Yang Guifei, também conhecida como “a concubina gorda”, [4] a mais afamada femme fatale na história da China. Turcos, uigures, sogdianos, árabes e persas, todos viveram nessa Roma chinesa – e construíram templos (a mesquita ainda é a mais bela na China; mais os três templos zoroastrianos já se foram).

Rota da Seda
Eu precisaria de mais alguns anos – e sucessivas viagens – para percorrer finalmente o núcleo da Rota da Seda, em diferentes trechos, obsessão que carregava desde o ginásio. Mas daquela vez queria concentrar-me na parte chinesa da Rota da Seda.

Comecei com um pintor/calígrafo que fazia cópias sublimes, em mandarim, de sutras do coração de Buda para monges que viviam há anos em cavernas nas montanhas ao norte de Chang'an. Foi supremamente difícil resistir a duas tentações: adeus jornalismo, por que não virar calígrafo, ou monge? Então, comecei a andar rumo oeste, através de Lanzhou – com desvio até o imaculado enclave tibetano de Xiahe e, no caminho, enorme concentração de Hui, muçulmanos chineses. Sempre por trem, ônibus e caminhões locais.

De Lanzhou fui até Chengdu, em Sichuan, de ônibus, depois a Lhasa no Tibete, de avião, ida e volta. Essa é uma ramificação clássica da Rota da Seda. Mas o que realmente me atraía era ir “ao impensável indizível” [orig. “beyond the pale”, intraduzível, nesse contexto]. Seguir o braço no extremo oeste da Grande Muralha e finalmente chegar a Jiayuguan – o “Primeiro e Maior Desfiladeiro sob os Céus”.

Foi tudo que eu esperava que fosse: uma espécie de cenário desolado para o fim do império. O fim (literal) da Grande Muralha. A oeste dali seria “o impensável indizível” [orig. “beyond the pale"]. Chineses banidos para oeste dali jamais voltariam. Ainda em 1997, olharam-me com ar incrédulo, quando eu disse que continuaria adiante, até Gansu, rumo aos desertos de Xinjiang. “Por quê? Lá não há nada.”

Faltavam ainda dois anos, para que Pequim lançasse oficialmente a política “Rumo ao Oeste”. A neocolonização superturbinada do “impensável indizível” além daquele ponto – uma Xinjiang extremamente rica em recursos naturais, mas povoada (ainda naquele momento) sobretudo por uigures muçulmanos – ainda não começara.

Morte, também chamada Taklamakan

Pelo desfiladeiro Gansu, cheguei finalmente às cavernas Dunhuang – dos maiores centros budistas da China por mais de 600 anos: uma festa de afrescos e imagens esculpidas em cavernas escavadas numa montanha na face leste do deserto de Lop e face sul do deserto de Gobi. Esplendor, deslumbramento, não bastam nem para começar a descrevê-las.

Um dos meus heróis eternos, o grande peregrino budista Xuanzang (602-664), parou em Dunhuang a caminho da Índia – onde recolheu textos sagrados para traduzi-los ao chinês (o que explica aquele calígrafo, lá atrás, em Xian).

O relato que o próprio Xuanzang escreveu de suas viagens épicas, Xiyuji (“Registro das Regiões Ocidentais”, ing.Record of the Western Regions  [5]) continua insuperado. Começou – e por onde começaria? – em Chang'an. Aconteceu de tudo, inclusive ter sido “torturado por alucinações” e ter de safar-se de “todos os tipos de demônios e seres estranhos”. Mas conseguiu voltar à China 16 anos depois, carregando uma fortuna em livros e estátuas de Buda.

A Rota da Seda bifurca-se em torno de Dunhuang. Tive de decidir. A estrada do norte segue a face sul das espetaculares montanhas Tian Shan – que acompanham o norte do aterrorizante deserto Taklamakan (cujo nome, em uigur, significa “você pode entrar, mas nunca sairá”). Ao longo do caminho, muitas cidades-oásis – Hami, Turfan, Aksu – antes de chegar a Kashgar.

Tomei essa estrada, sob temperaturas sempre próximas de 50 graus Celsius, montado numa Land Rover em ruínas com um Hui monossilábico que deu conta da trilha pelo deserto como um Ayrton Senna. E aquela era a rota “mais fácil” – comparada à rota do sul. Eu imaginava os monges budistas, montados em camelos, pelas montanhas Karakoram até Leh (em Ladakh) e Srinagar (na Caxemira) e dali até a Índia.

Sven Hedin 
Até tentar enfrentar as horrendas tempestades de areia do Taklamakan é absolutamente impossível. Resta contornar o deserto. Foi o que não fez o mais safo dentre os gigantes modernos da Rota da Seda, Sven Hedin (1865-1952), autor de My Life as an Explorer [6] (1926), homem de colhões de aço que enfrentou a morte incontáveis vezes e deixou atrás de si uma trilha cavalos, camelos e, claro, homens, mortos. 

Numa de suas aventuras, quando Hedin tinha esperanças de conseguir cruzar um canto sudoeste do Taklamakan em menos de um mês, os camelos morreram, um depois do outro; a caravana foi atingida por uma tempestade de areia; o último dos seus homens morreu; só Hedin chegou ao outro lado, “como se guiado por uma mão invisível”.

Eu, guiado pelo meu Hui bem visível, finalmente cheguei a Kashgar – uma volta alucinante à Eurásia medieval. Também ali, naquele momento, a neocolonização forçada dos Han estava apenas começando, em torno da estátua de Mao na Praça do Povo. A feira do domingo saía diretamente do século 10. Não se via um único chinês Han nem por perto da mesquita Id Kah verde-clara, nas rezas da madrugada.

Em Kashgar a Rota da Seda novamente se divide e desdobra-se. Os monges budistas viajariam pelo Hindu Kush por Tashkurgan, até os reinos budistas de Gandhara e Taxila, no Paquistão de hoje. Viajei pela estrada da amizade motorizada China-Paquistão – quero dizer, tomei a fabulosa autopista Karakoram de Kashgar pelo desfiladeiro Khunjerab, de jipe e ônibus local, direto até Islamabad, com uma parada no idílico vale Hunza. O norte do Paquistão estava em paz, naqueles dias pré-guerra-ao-terror; apesar de os Talibã estarem no poder no Afeganistão, não havia à vista praticamente nenhum islamista hardcore.

Rota da Seda percorrida pelo explorador Sven Hedin
Os mercadores da Rota da Seda fariam diferente. Tomariam o rumo norte, das montanhas Pamir até Samarcanda e Bukhara; ou rumo sul, das Pamirs a Balkh (no Afeganistão de hoje) e dali até Merv (no Irã). De Merv, uma rede de Rotas da Seda parte diretamente até o Mediterrâneo via Bagdá-Damasco, Antióquia ou Constantinopla (Istambul). Eu precisaria de mais vários anos para seguir trechos de todas essas estradas.

O caso é que, de repente, eu estava em Islamabad em negociações com os Talibã, enquanto por toda a Ásia o mundo financeiro vinha abaixo. Voltei a Cingapura e dali a Hong Kong. A Tailândia, a Indonésia, a Coreia do Sul estavam desmoronando. Mas Hong Kong sobrevivia, mais uma vez – agora, atentamente inspecionada por Pequim.

A mãe-pátria sabe das coisas

15 anos depois, nenhuma das tolas predições ocidentais sobre os chineses ‘endurecerem’ em Hong Kong, se confirmaram. A terceira transição suave de poder em Hong Kong, sob mando chinês, já está em andamento. O vice-presidente chinês Xi Jinping – próximo Imperador Dragão – já espalhou suas generosas bênçãos.

Eis o citação chave, do que disse Xi: “15 anos depois de devolvida à China, Hong Kong sobreviveu a várias tempestades. Acima de tudo, o princípio de “um país, dois sistemas” obteve enormes avanços (...). A economia de Hong Kong desenvolveu-se bem e a vida dos cidadãos melhorou. Houve avanços também no desenvolvimento democrático, e a sociedade tornou-se harmoniosa.”

Bem... Nem tão harmoniosa. É verdade: Hong Kong é a capital da Instant Profit Opportunity (IPO), Oportunidade de Lucro Instantâneo. É o principal centro offshore do mundo para o comércio de Yuans. É capital planetária sem igual – em muitos aspectos, põe New York no chinelo; é o melhor que o mundo tem a oferecer em ambiente ultracompactado. A economia da cidade cresceu todos os anos, exceto em 2009 – ano do abismo da economia mundial. O PIB cresce 4,5% ao ano, em média. O desemprego jamais ultrapassou 6%.  

Mas Hong Kong ainda não fez a transição para uma economia de alto valor agregado, economia baseada no conhecimento. O governo atual, de Donald Tsang aposta em “seis novas indústrias pilares”, que devem trazer “claras vantagens” com vistas ao crescimento: indústrias culturais e ‘criativas’; serviços médicos; educação; inovação e tecnologia; serviços de testagem e certificação; e indústrias ambientalmente orientadas.

O desenvolvimento desses “pilares”, até agora, é desprezível. Hong Kong continua a depender de suas quatro indústrias-núcleo: serviços financeiros, turismo, serviços profissionais e comércio. Mais de 36 milhões de turistas/ano não farão de Hong Kong uma sociedade baseada no conhecimento. A maioria dos turistas vêm – e de onde viriam? – da mãe-pátria. O chicote volta, bravo, sobre quem chicoteia: a maioria dos Hong-Konguenses os veem como “gafanhotos” – camponeses grosseirões, as malas estufadas de Yuan, pagando tudo à vista. E, isso, quando a desigualdade na própria Hong Kong cresce dramaticamente.

No que tenha a ver com Pequim, tudo é, sempre, “atravessar o rio, sentindo as pedras”. Eis, mais uma vez, o que disse Xi: “O governo da SAR [Special Administrative Region/Região Administrativa Especial] reuniu vários setores sociais sob forte apoio do governo central e da pátria-mãe.” A pátria-mãe tem lá suas próprias ideias de fazer reviver a Rota da Seda – e Hong Kong talvez possa ser parte do projeto, pelo menos no que tenha a ver com serviços financeiros.

Vai-se ver, talvez seja hora de bailar outra vez, como se fosse 1997, e outra vez atacar o Taklamakan. É... Pode-se tirar o menino de dentro da Rota da Seda, mas não se pode tirar a Rota da Seda de dentro do menino.



Notas dos tradutores

[1] 1/7/1997, Grã-Bretanha devolve Hong Kong à China (mais em: BBC ON THIS DAY -  1997: Hong Kong handed over to Chinese control).

[2] Deng Xiaoping morrera, aos 92 anos, dia 19/2/1997, menos de seis meses antes, portanto, do que Pepe Escobar narra aí (mais em: BBC ON THIS DAY1997: China's reformist Deng Xiaoping dies).

[3]
Assista a seguir: Robert Plant em “Stairway to heaven”, 1983.

[4] Imagem em: Yang Guifei

[5] Pode ser lido (em inglês) em: Xuanzang’s Record of the Western Regions

[6] Veem-se a capa e algumas páginas em: My Life as an Explorer

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