terça-feira, 6 de novembro de 2012

Para uma menina do Recife



Publicado em 6/11/2012 por Urariano Motta*

Penélope, a menina do Recife a quem me dirijo agora, não está só, ainda que fale em seu nome ao me procurar por email. De modo bem didático, ela me conta que, num coletivo de alunos da 8ª série do Instituto Capibaribe, prepara um trabalho para ser exibido na feira de conhecimento da escola. E que esse trabalho foi solicitado pelos professores Mauro Santos, de Português, e Júlia Vergeti, de História. Eu deveria responder logo que ainda há educadores no Recife. Mas me calo para aqui terminar a didática da história.

Penélope Andrade tem apenas 13 anos. Pois a menina mocinha me procura pra saber notícias da ditadura no Recife, e com uma maturidade que talvez eu não tivesse na sua idade. É preciso dizer que o mais ardente em curiosidade sou eu? O que viria das perguntas e entrevista da menina? Acompanhem por favor a história.

Quantos anos tinha nessa época? E o que fazia? Penélope começa. 

Ao que respondo:

– Quando houve o golpe, no dia primeiro de abril e não em 31 de março como os militares dizem, com medo, porque desejam afastar o ridículo que é um golpe no dia universal da mentira, em primeiro de abril de 1964 eu estava com 13 anos de idade.

Era estudante de escola pública, que na época era a melhor escola que havia, e de tal maneira que chamávamos as escolas privadas de PP (Pagou, passou). Eu era um adolescente angustiado – e que adolescente não é? – carregado de traumas familiares (aqueles traumas que não confessamos a ninguém), que adorava ler, que sonhava em ser ator de teatro, poeta, desenhista, pintor e galã de cinema. Se possível, na ordem inversa. Mas o espelho e a realidade me livraram de ser Rodrigo Santoro. (Embora digam que depois de maduro eu melhorei muito…). As ideias da esquerda já me chegavam, mas eu era um reacionário leitor de Seleções Reader’s Digest, uma revista infame de propaganda norte-americana. Pra minha sorte, os amigos que mais me influenciaram eram de esquerda. De um deles ouvi pela primeira vez a palavra Darwin, e a sua teoria da evolução, que batia de frente contra a criação do homem por Deus, como eu acreditava e discutia furioso. Em resumo: eu tive a sorte de as melhores pessoas que eu conheci, quando eu mais precisava, terem sido de esquerda. Isso foi, é uma riqueza sem tamanho.

– Considerando fatores econômicos e político, sabendo que nessa época estávamos sendo governados por João Goulart, como estava a situação do país?

– O Brasil era subdesenvolvido, o que quer dizer: atrasado, tanto do ponto de vista econômico quanto social. Pra você ter ideia, os trabalhadores da zona da mata de Pernambuco, os cortadores de cana, recebiam menos, muito menos que o salário mínimo. Foi no primeiro governo de Arraes, a partir de 1962, que os trabalhadores da cana tiveram a conquista do salário mínimo. Isso foi tão bom, que Paulo Cavalcanti (historiador e jornalista, comunista histórico do Recife) contou que os trabalhadores compravam 2 relógios, “um pro horário de verão, outro pro horário de mesmo”. As ligas camponesas nasciam e ameaçavam o domínio dos latifundiários, os grandes donos de terras. O Nordeste, Pernambuco em particular, fervia muito além do frevo. Estávamos com o MCP, Movimento de Cultura Popular, que reunia artistas de valor, engajados na luta pelas reformas (como chamavam as reivindicações para dar ao povo o direito de cidadão), um movimento em que Abelardo da Hora, o maior escultor do Brasil, vivo e trabalhando ainda hoje, criou tantas esculturas, lindas, como o Vendedor de Pirulito, que pode ser visto no Parque 13 de maio.

Era o tempo em que no Recife estavam Celso Furtado, Josué de Castro, Paulo Freire, intelectuais que foram reconhecidos em todo o mundo, mas perseguidos pelo regime militar que se instalou. Vale dizer, a repressão que se abateu veio com força absoluta sobre os pernambucanos, a ponto de cometerem barbaridades públicas, como o espancamento de Gregório Bezerra nas ruas, com golpes de ferro na cabeça. Queriam inclusive enforcá-lo na praça de Casa Forte. Esse era o tempo e o clima. Um país que exigia reformas urgentes, que os Estados Unidos interpretaram como um caminho aberto para o comunismo, e por isso apoiaram o golpe que os militares deram.

– Após o regime, como foi a redemocratização do país e a escolha do presidente?

– Você pulou cedo demais. Antes de “após o regime”, houve o pior, o “durante o regime”. Isto é, o tempo da ditadura. Você não pode nem imaginar o filme de terror, pior que um filme de terror, porque era real, insuportavelmente real, os anos de ditadura. Artes, música, cinema, literatura censuradas. Jornais sob censura prévia. Prisões, mortes e assassinatos sob torturas. Deixo pra você alguns artigos que escrevi sobre aquele tempo em Ivanovitch, 1964  e Raquel, a viúva que amamos, mais suave, mas igualmente verdadeiro.

A redemocratização do país não veio como sonhávamos. Ou seja, queríamos a realização, a continuação da história interrompida, com o aprofundamento da democracia pela qual o povo lutara antes do golpe. Queríamos trabalho para todos, as artes e a ciência para todo o mundo, o socialismo no poder, a punição severa dos crimes praticados pelos torturadores. Nada disso se cumpriu. Para nós, a redemocratização começou a dar uns lampejos no governo Lula e na continuação com a presidenta (atenção, a forma “presidenta” é legítima) Dilma. Começou, apenas.

– Que heranças econômicas foram deixadas após o regime? Você as considera boas ou ruins?

– É claro que a herança vinda do regime é a pior possível. Tanto do ponto de vista social, porque houve um desmantelamento da qualidade do ensino público no Brasil (e a direita, esperta, põe na conta do pós-ditadura), quanto do econômico, porque aumentou a centralização do desenvolvimento no Sudeste. Isso quer dizer, o Nordeste afundou sob os anos de ditadura. A cultura brasileira foi rompida, rasgada, e muitos de seus melhores artistas enlouqueceram (Glauber, Torquato Neto, Vandré…).

Mais: e se houve algum avanço econômico, e depois de 21 anos algum deve ter havido, paga o preço de tantas pessoas cortadas, barbarizadas? Seria o mesmo que acreditar que a herança deixada por um homem morto é melhor que a sua vida.  

– Comparando o antes e depois do regime militar o que mudou na sua vida?

– Muito mudou. Fiquei menos feio e sou escritor. Mas as perdas pessoais foram imensas, e aqui faço uma homenagem a uma pessoa em particular, que vem a ser o seu tio-avô Luiz Paulo. Ele foi uma das melhores pessoas que conheci naquele maldito ano de 1973, quando foram assassinados seis militantes socialistas no Recife, e sobre os quais escrevi Os Corações Futuristas e Soledad no Recife.

Luiz Paulo era um intelectual, um escritor de grande senso de humor, que perdemos antes do seu fim, porque ele se autoexilou em São Paulo, por conta das burrices e divisões autofágicas na esquerda do Recife. Com ele fundamos o jornal A Xepa, o primeiro jornal alternativo no Recife sob a ditadura. E escrevo “com ele” pra não dizer: A Xepa foi Luiz Paulo e o resto. Para esse jornal, dele veio o maior estímulo e dedicação, porque acreditávamos, na época, que estávamos fundando um novo Pasquim no Recife. Sonhar era bom e Luiz Paulo esteve ao nosso lado nesse sonho.

E aqui terminei a entrevista.

Terminei, não, fiz uma pausa, fizemos uma pausa, eu e Penélope, eu e os alunos como ela. Essa continuação da história que passamos adiante, essa continuidade de gênese e recriação do mundo com que nos confraternizamos, esse despertar de educadores para a realidade política da ditadura é como descobrir um mundo melhor do que imaginávamos.

Calderón de La Barca dizia que a vida é sonho, ao que a realidade nos diz que o sonho é a vida, apesar de tantos pesadelos. O que afinal guarda uma coerência interna, pois o pesadelo é gêmeo univitelino do sonho. Esse pesadelo imenso e geral tem pausas e intervalos felizes, como o da curiosidade histórica dessa mocinha Penélope. A menina do Recife a quem mando um sorriso e um abraço agora.
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Urariano Motta* é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).

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2 comentários:

  1. (comentário enviado por e-mail e postado por Castor)

    Que bela lição deste ofício de viver como brasileiro que, mais uma vez, nos ministra mestre Urariano, desta feita pela púbere Penélope. Como gostaria eu que ela e suas e seus colegas do País inteiro tivessem interesse e conhecimentos para ler e entender a entrevista, em suas profundezas. O escritor e ativista de Água Fria, naquela Beberibe em cujo Córrego da Calma tantas lutas se travaram desde a Praia, foi aos 13 anos tomado de surpresa num Recife cercado de tanques e humilhações decorrentes, como a prisão do grande Gregório Bezerra, libertado e banido, pouco mais de 5 anos decorridos, por exigência dos guerrilheiros responsáveis pelo sequestro do Embaixador estadunidense, o qual foi para Moscou e só pôde regressar ao Recife 10 anos passados.

    Estava eu com 26, quase 27 anos, quando aquela barbaridade do golpe praticado pela guarda pretoriana da burguesia e classe média prepostas de interesses imperiais, e também horrorizei-me, como jovem diplomata que vivera tão intensamente o período iniciado em 1954, quando um marechal patriota (Henrique Duffles Batista Teixeira Lott) contragolpeou um golpe em andamento num cruzador de nossa Marinha.

    Aquele Brasil de Graciliano, Guimarães Rosa, de um jovem maranhense chamado Ferreira Gullar, das artes concreta e neoconcreta, da Bossa Nova e do Cinema Novo - que mais, dentre tanta coisa? - falecia diante de nossas vistas, a UNE pegando fogo, dois dias depois militares à paisana visitando o Itamaraty e instando um diplomata jovem para que mandasse um comunicado oficial ao Festival de Cannes anulasse a inscrição competitiva de Deus e o Diabo na Terra do Sol!...

    Exigiu-me muita contenção, sangue-frio ou, como hoje o jergo encaixou engraçadamente, por meio de palavra endocrinológica, muita adrenalina (usada ad nauseam e impropriamente): eu lhes disse que não tinha autoridade para fazê-lo, sem a revogação da decisão da Comissão de Seleção de Filmes para Festivais do meu Ministério e instruções do meu Chefe (eles são muito fãs de chefes, mais do que diretores). Mas este teria de recebê-las também do Secretário-Geral e este do Chanceler, em atendimento a pedido dos ministros militares. Um deles, ten.cel Teixeira, exclamou: “Pô, esses caras do Itamaraty não são assim tão bichas; se são, são hierarquizados!”...

    Assim mesmo, um deles, um certo major Novis, que se declarou membro de uma equipe que preparava um projeto de repartição de inteligência que seria um estrondo (outro termo em voga há 48 anos), a ser em breve inaugurada (SNI), me disse, agora sem os ares autoritários do início da visita, que o filme do Glauber seria exibido em sessão especial para o coronel João Figueiredo (sim!) e ele me telefonaria, o que fez, dois dias depois, marcando encontro comigo no botequim-bar frente ao Itamaraty. Tomando aquele cafezinho ralo, fervente e sem graça que se servia naquelas xícaras em pirezinhos metálicos, tudo pelando, Novis me disse: “Secretário, o filme foi liberado; o coronel Figueiredo disse que é bem comunista, mas é filme de macho!”. A declaração se assemelhava às de Cristino de São Jorge, o Corisco de Lampião, mas sem carga divinizatória ou revolucionária.

    Vou parar por aqui, porque me sinto tomando carona em assunto atual e importantíssimo, a menina-moça Penélope, para memorializar um trechinho da minha vida. Desculpem! Perdão, Urariano.

    Mas que, a partir de 1º de abril, 1964 (*) foi um ano de bosta, foi! O pior da minha vida de 75, sem dúvida.

    Abraços do
    ArnaC

    (*) Naquela mesma noite, a pedido do Coutinho, na Paraíba, vieram trazer à minha casa latas dos negativos já rodados de Cabra marcado para morrer. Passadas algumas semanas, não querendo implicar-me numa “batida”, David decidiu levá-las à casa do seu pai, o general Neves, sob cuja cama ficaram alguns anos, até que fosse possível revelá-las, montá-las e sair um filmaço documentário.

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  2. Grande Arnaldo

    Eu não o perdoo. Não posso e nem devo perdoá-lo.
    Um homem que tem a sua cultura, e mais importante, um homem que tem a sua
    história, não pode ser perdoado se deixar esta revelação entre 2 pessoas.
    Permita por favor eu divulgar esta sua mensagem.
    Grande é o mundo. "Mais fortes são os poderes do povo".
    Abraço fraterno
    Urariano

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