quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Pepe Escobar: O “banho de sangue que não é banho de sangue” - A desgraça do Egito

15/8/2013, [*] Pepe Escobar, Russia Today
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Egípcios choram sobre os corpos envoltos em mortalhas em uma mesquita no Cairo em 15 de agosto de 2013  (Foto: AFP / Khaled Mahmoud)
O “banho de sangue que não é banho de sangue” no Egito mostrou que as forças mais linha-dura de supressão e de corrupção reinam supremas, enquanto interesses estrangeiros – a Casa de Saud, Israel e o Pentágono – apóiam a estratégia impiedosa dos militares.

Pare. Olhe as imagens. São cadáveres alinhados num necrotério improvisado. Como se justificaria esse horrendo banho de sangue no Egito?  Assista  vídeo (em inglês) a seguir. Escolha seu lado. Ou é remix egípcio da Praça Tiananmen, ou é banho de sangue que não é banho de sangue comandado pelos golpistas do golpe que não é golpe, com o objetivo de combater “o terror”.


Com certeza não foi operação para desalojar gente – como o Departamento de Polícia de New York “evacuando” o pessoal de Occupy Wall Street. Como tuitou um jornalista da [empresa] Sky, parecia mais “um vasto assalto militar contra civis desarmados” usando tudo, de tanques e gás lacrimogêneo até atiradores com armas de precisão no alto dos prédios.

Daí o grande número de mortos assassinados indiscriminadamente – o fogo cruzado de números vai de algumas poucas centenas (segundo o “governo de transição”) a pelo menos 4.500 (segundo a Fraternidade Muçulmana), incluindo pelo menos quatro jornalistas e Asmaa, 17 anos, filha de Mohamed El Beltagy, alto dirigente da Fraternidade Muçulmana.

El Beltagy, antes de ser preso, disse uma frase crucial:

Se vocês não tomarem as ruas, ele [o general Abdul-Fattah al-Sisi, líder do golpe que não é golpe que nomeou o governo de transição] fará do Egito outra Síria.

Errado. Sisi não é Bashar al-Assad. Que ninguém espere clamores ocidentais apaixonados, a exigir “ataques a alvos predefinidos” ou uma zona aérea de exclusão sobre o Egito. Sisi pode até ser ditador militar que mata o próprio povo, mas é dos “nossos” filhos-da-puta.

“O que nós dizemos é e vale”[1]

Consideremos as reações. Os letárgicos poodles da União Europeia clamaram por “moderação” e descreveram a coisa como “extremamente preocupante”. Declaração da Casa Branca dizia que o governo de transição deve “respeitar direitos humanos” – o que, parece, pode ser interpretado como dronagem equivalente à dronagem de Manning/Snowden, mas da escola Paquistão/Iêmen de direitos humanos.

Esse patético arremedo de diplomata, o Secretário-Geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, pelo menos foi claro: “O Egito é importante parceiro da OTAN através do Diálogo Mediterrâneo”. Tradução: a única coisa que realmente nos interessa é que aqueles árabes façam o que os mandamos fazer.

Homem chora enquanto olha para um dos muitos corpos dispostos em linha, assassinados pelas forças de “segurança” egípcias ao atacarem dois acampamentos enormes em Rabaa al-Adawiya e Praça Al-Nahda no Cairo onde partidários do presidente deposto, Mohamed Mursi estavam acampados, em 14 de agosto de 2013 (Foto: AFP / Mosaab El-Shamy)
Despido de qualquer retórica – de indignação ou outra – o ponto chave é que Washington não suspenderá a ajuda anual de $1,3 bilhão para o exército de Sisi, faça ele o que fizer. Sisi, esperto, já declarou uma “guerra ao terror”. O Pentágono o apóia. E o governo Obama também já embarcou nessa – relutantemente ou não.

Vejamos agora quem está revoltado. O Qatar, como se podia prever, condenou o massacre; afinal, o Qatar estava financiando o governo de Mursi. A Frente de Ação Islâmica, braço político da Fraternidade Muçulmana na Jordânia, encorajara os egípcios a manterem o protesto para “derrotar a conspiração” organizada pelo antigo regime – de mubarakistas sem Mubarak. [2]

A Turquia – que também apóia a Fraternidade Muçulmana – exigiu que o Conselho de Segurança da ONU e a Liga Árabe agissem imediatamente para deter “um massacre”; como se a ONU e a Liga Árabe controlada pelos sauditas fossem interromper suas três horas de almoço grátis para fazer alguma coisa.

O Irã – corretamente – alertou para o risco de guerra civil. Não implica que Teerã esteja apoiando cegamente a Fraternidade Muçulmana, especialmente depois de Mursi ter incitado os egípcios a abraçarem uma jihad contra Assad na Síria. Teerã observou é que a guerra civil já está em curso.

Agora, é cuidar da matança

“Bizantino” é pouco, para explicar o jogo de passar adiante a responsabilidade. O “banho de sangue que não é o banho de sangue” aconteceu quando o “governo” nomeado por Sisi havia prometido começar a construir uma “transição” apoiada pelos militares que seria politicamente muito inclusiva.

Mas, farto já de seis semanas de protestos que denunciavam o “golpe que não é golpe”, o governo de transição mudou a narrativa e decidiu não deixar ninguém vivo para contar a história.

Segundo as análises mais bem informadas da mídia egípcia, o Vice-Primeiro-Ministro Ziad Baha Eldin e o Vice-Presidente para Assuntos Estrangeiros, Mohamed ElBaradei queriam pegar leve contra os manifestantes; mas o Ministro do Interior, General Mohammad Ibrahim Mustafa e o Ministro da Defesa – o próprio Sisi – queriam solução medieval.

O primeiro passo foi culpar preventivamente a Fraternidade Muçulmana pelo massacre – bem quando a Fraternidade Muçulmana culpava o grupo Jemaah Islamiyah por usar Kalashnikovs e queimar igrejas e postos da Polícia.

Mulher chora sobre o corpo de sua filha envolta em mortalhas em uma mesquita no Cairo, em 15 de agosto de 2013 (Foto: AFP / Khaled DESOUKI)
A principal razão pela qual o “banho de sangue que não é banho de sangue” foi deflagrado nessa quarta-feira é que a Fraternidade Muçulmana tentou invadir o eternamente temido Ministério do Interior. Ibrahim Mustafa, linha duríssima, nunca admitiria.

Os bandidos de Sisi indicaram 25 governadores provinciais, dos quais 19 são generais, bem a tempo de “recompensar” os altos escalões militares e, assim, solidificar o “estado profundo” egípcio, ou, de fato, o estado policial. E para coroar o “banho de sangue que não é banho de sangue”, os bandidos de Sisi declararam lei marcial por um mês. Nessas circunstâncias, a renúncia de ElBaradei, queridinho do ocidente, foi pouco, e nem tirou o sono de Sisi.

“O espírito original da Praça Tahrir está agora morto e enterrado”, como disse uma  iemenita miraculosamente ainda não assassinada pelos drones de Obama, Tawakel Karman, Prêmio Nobel da Paz.

A questão chave é saber quem lucra com um Egito super polarizado, com uma guerra civil que jogue a bem-organizada e fundamentalista Fraternidade Muçulmana contra o “estado profundo” controlado pelos militares.

As duas opções são igualmente repulsivas (além de incompetentes). Mas os vencedores locais são facilmente identificáveis: a contrarrevolução – os mubarakistas duros de matar, por exemplo; um bando de oligarcas corruptos; e, mais que todos os outros, o próprio estado profundo, ele mesmo.

Reina a repressão mais linha-dura. A corrupção reina. E reinam forças estrangeiras (como a Arábia Saudita que até agora é quem está pagando a maior parte das contas, com os Emirados Árabes Unidos).

Internacionalmente, os grandes vencedores são a Arábia Saudita (que deslocou o Qatar); Israel (porque o exército egípcio é ainda mais dócil que a Fraternidade); e – quem poderia ser?! – o Pentágono, cafetão do exército egípcio. Nem em viagem pela Via Láctea haverá quem diga que esse eixo Casa de Saud/Israel/Pentágono seria “bom para o povo egípcio”.

Nosso homem é o Xeique Al-Tortura

Recapitulemos. Em 2011, o governo Obama não disse, até o último minuto, que “Mubarak tem de sair”. Hillary Clinton queria uma “transição” liderada pelo espião-chefe e ativo da CIA, Omar Suleiman – conhecidíssimo na Praça Tahrir como “Xeique Al-Tortura”.

Repórteres correm para se esconder durante confrontos entre partidários da Irmandade Muçulmana do Egito deposto presidente Mohamed Mursi e policiais. Cairo, em 14 de agosto de 2013 (Foto: AFP / Mosaab El-Shamy)
Naquele momento, a piada que circulava em círculos seletos em Washington contava que o governo Obama já era garota-de-torcida da Fraternidade Muçulmana (aliada do Qatar). Agora, como iô-iô, o governo Obama tenta encontrar jeito de distribuir a nova narrativa – o “leal” exército egípcio, que corajosamente elimina a Fraternidade Muçulmana “terrorista”, para assim “proteger a revolução”.

Para começo de conversa, nunca houve revolução alguma; foi-se a cabeça da serpente (Mubarak), mas a serpente continuou viva e chicoteando. Agora, apareceu a nova serpente, em tudo igual à velha. Além do mais, é fácil vender à arquibancada desinformada que Fraternidade Muçulmana = al-Qaeda.

O líder supremo do Pentágono, Chuck Hagel, passou o dia 3 de julho grudado ao telefone com Sisi, enquanto acontecia o “golpe que não é golpe”. O pessoal do Pentágono quer muito que todos acreditemos que Sisi garantiu a Hagel que logo estaria por cima da carne seca. Praticamente 100% do governo, na Beltway, engoliu essa. Daí brotou a versão oficial em Washington do “golpe que não é golpe”. Tim Kaine, da Virginia, na Comissão de Relações Exteriores do Senado, até elogiou muito os Emirados Árabes Unidos e a Jordânia, aquelas democracias modelares, pelo entusiasmo com que acolheram o “golpe que não é golpe”.

É importante listar os cinco países que explicitamente endossaram o “golpe que não é golpe”. Quatro deles são petromonarquias do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG, também conhecido como Clube Contrarrevolucionário do Golfo: Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait e Bahrain. E o quinto é aquela monarquiazinha, a Jordânia, que o CCG quer anexar ao Golfo.

Ainda mais patético que alguns ditos liberais egípcios, alguns esquerdistas, alguns nasseristas e sortimento variado de progressistas que defenderam a sede de sangue de Sisi, foi o vira-casaca Mahmoud Badr, fundador do Tamarrod – o movimento que liderou as demonstrações massivas que levaram à derrubada de Mursi. Em 2012, esconjurava a Arábia Saudita. Depois do golpe, prostrou-se em homenagem. Esse, pelo menos, sabe quem paga as contas.

E há também Ahmed al-Tayyeb, o Grande Imã de al-Azhar, o Vaticano do Islã sunita. Disse que “Al-Azhar (...) não sabe dos métodos usados para dispersar os protestos, só vimos o que a televisão mostrou.” Sandice. Ele várias vezes elogiou Sisi.

Partidários da Irmandade Muçulmana, do deposto Presidente Mohamed Mursi, retiram ferido durante confrontos com a polícia do Cairo na Praça Mustafa Mahmoud após forças de segurança dispersarem manifestantes em 14 de agosto de 2013 (Foto: AFP / Str)
Bato meus cílios... e você desaba

Não há outro modo de dizer isso: do ponto de vista de Washington, os árabes que se matem uns os outros até o dia do Juízo Final, e tanto faz que sunitas matem xiitas, xiitas matem sunitas, jihadistas contra secularistas, camponeses contra urbanizados, egípcios contra egípcios. A única coisa que conta são os acordos de Camp David; e ninguém tem licença para antagonizar Israel.

Assim sendo, está ótimo que os subalternos de Sisi em coturnos tenham pedido que Israel mantenha seus drones próximos da fronteira, para que possam prosseguir em sua “guerra ao terror” no Sinai. Para todas as finalidades práticas, Israel governa o Sinai.

Mas cancelou-se uma entrega de F-16s ao exército de Sisi. Na vida real, todas as vendas de armas dos EUA no Oriente Médio têm de receber “autorização” de Israel. Pode-se, portanto, conjecturar que Israel – pelo menos por hora – ainda não está muito segura sobre quais são, de fato, os planos de Sisi.

É muito instrutivo ler o que pensa Sisi sobre “democracia” – e escreveu quanto estudava no War College, nos EUA. O homem é essencialmente islamista – mas, acima de tudo, anseia pelo poder. E os Irmãos da Fraternidade Muçulmana interpuseram-se no caminho dele. Tiveram de ser aniquilados e descartados.

A “guerra ao terror” de Sisi é provável sucesso estrondoso como slogan de Relações Públicas, para legitimar sua candidatura a um mandato popular. Está tentando aparecer na foto como um novo Nasser. É Sisi o Salvador, cercado por um bando de Sisi-zetes. Um colunista escreveu no jornal Al-Masry Al-Youm que Sisi nem precisa ordenar: é só ele “bater os cílios”. A campanha Sisi-para-presidente já está em andamento.

Quem conheça os ditadores cabeça-de-lata que os EUA promoveram na América Latina nos anos 1970s sabe farejá-los de longe. Não é Salvador. Não passa de um Al-Sisi-nêitor, Al-Sisi-no – mais um inglório ditador cabeça de prego, onde meu colega Spengler definiu, sem meias palavras, como uma república de bananas, sem bananas.



[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (“The Roving Eye”) no Asia Times Online; é também analista e correspondente das redes Russia TodayThe Real News Network TV e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu, no blog redecastorphoto.

Livros
___________________________

Notas dos tradutores
[1]Orig. what we say goes. A expressão aparece em discurso de Bush Pai, de 1/2/1991:

Quando vencemos, e venceremos, teremos ensinado a um ditador perigoso e a todos os tiranos tentados a seguir suas pegadas, que os EUA temos uma nova credibilidade e que o que nós dizemos é e vale, e que não há lugar para agressão sem lei no Golfo Persa e nessa Nova Ordem Mundial que buscamos criar”. A expressão também aparece, em 2007, em título de livro de Chomsky (What We Say Goes: Conversations on U.S. Power in a Changing World – Interviews with David Barsamian, New York: HenryHolt/Metropolitan Books, October 2007).


[2] 16/6/2013, redecastorphoto em: Mubarakismo sem Mubarak: A luta pelo Egito, Joseph Massad, Counterpunch, traduzido.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.