quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Pepe Escobar: Por quê a França fez “a estúpida” no caso do Irã

12/11/2013, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

John Kerry: "Os EUA não são cegos, nem estúpidos"
PARIS – O secretário de Estado dos EUA John Kerry declarou, em frase já famosa, que os EUA “não são cegos” nem “estúpidos” no empenho para assinar um acordo histórico sobre o programa nuclear iraniano. Então, sim, o mundo foi informado. Mas Kerry, provavelmente, embora em código, falava da França.

O fracasso das negociações de Genebra no final de semana, para um acordo nuclear temporário, teve pelo menos o mérito de revelar quem realmente está bloqueando o acordo: o eixo do medo e ranger de dentes – os Likudniks em Israel, a Casa de Saud e o governo François Hollande na França.

Torrentes de bytes já detalharam o modo como Israel rotineiramente sequestra a política externa dos EUA. Eis aqui mais uma demonstração, desenhada, de como funciona o tal de Rabo Que Balança o Cachorro.

Na 6ª-feira passada, à noite, o presidente Barack Obama telefonou ao primeiro-ministro de Israel, Bibi Netanyahu, para pedir-lhe que não detonasse Genebra. Bibi ouviu e, imediatamente depois, em sequência, telefonou para o primeiro-ministro britânico David Cameron; para o presidente Vladimir Putin da Rússia; para a chanceler alemã Angela Merkel; e para o presidente Hollande da França, e pediu que eles... detonassem Genebra.

Hollande foi o único que obedeceu a ordem de marcha de Bibi. E, tudo isso, depois que o próprio Kerry ouvira aula magna de Bibi, na pista do aeroporto Ben Gurion em Telaviv, na 6ª-feira pela manhã.

Wendy Sherman
Acelere a fita até o finzinho, domingo de manhã cedo. Não por acaso, Wendy Sherman, principal negociadora dos EUA para a questão nuclear iraniana, empenhada militante dos “Israel em primeiro lugar” e racista e limítrofe, voou de Genebra direto para Israel, para “tranquilizar” seu verdadeiro líder, Bibi, de que não haveria acordo.

Não é segredo que Bibi e os Likudniks também mandam um bocado na colina do Capitólio. Além de detonar Genebra, Bibi pode também encapar mais uma vitória temporária, com o Congresso dos EUA já pronto para impor ainda mais sanções contra o Irã, anexando-as à Lei de Autorização da Defesa Nacional [orig. National Defense Authorization Act].

Apresento-lhes Bandar Fabius

No que tenha a ver com o comportamento francês, é condicionado tanto pelo formidável lobby israelense em Paris quanto pelo dinheiro muito das petromonarquias do Golfo.

Meyer Habib
Com certeza ajudou que, segundo o The Times of Israel, o deputado francês Meyer Habib – que também tem passaporte israelense, ex-porta-voz oficial do Likud na França e amigão de Bibi – tenha telefonado ao ministro de Relações Exteriores da França para dizer-lhe que Israel atacaria instalações nucleares iranianas se o acordo que estava sobre a mesa fosse assinado.

Podem chamar de “efeito AIPAC”. Habib é vice-presidente do Conselho Representativo das Instituições Judaicas Francesas, CRIF – equivalente francês do Comitê de Assuntos Públicos EUA-Israel. E o ghostwriter que escreve discursos para o presidente Hollande também é membro do CRIF.

Fabius, grandiloquente e pegajoso feito Roquefort passado, invocou – e o que mais poderia ser? – “preocupações com a segurança de Israel” e detonou Genebra. O presidente Hassan Rouhani do Irã e o ministro de Relações Exteriores, Mohammed Javed Zarif sempre se preocuparam muito com o risco de serem sabotados pela própria oposição interna, o Corpo de Guardas Revolucionários Islâmicos, de linha dura. Portanto, a diretiva No. 1 era que nenhum detalhe do acordo poderia vazar durante as negociações.

Foi exatamente onde Fabius agiu. Antes, até, de Kerry pousar em Genebra, Fabius já dizia, por uma rádio francesa, que Paris não aceitaria um jeu des dupes (“jogo de burla”, “jogo de enganação”).

Laurent Fabius
por Gervais
O papel de Fabius foi impagavelmente sintetizado pelo proverbial diplomata ocidental não identificado, que disse à Reuters que:

(...) os americanos, a União Europeia e os iranianos trabalharam intensamente durante meses nessa proposta. Isso, agora, não passa de Fabius tentando intrometer-se no que é importante, já no final das negociações.

Terabytes de comentários pela mídia dizem que Washington e Paris estão fazendo o jogo do “policial bonzinho x policial durão” na questão iraniana. Não exatamente: está mais para Galo Gaulês querendo aparecer.

Hollande estava doido para bombardear Damasco, quando Obama fugiu da raia, no último minuto, e desistiu do ataque “limitado”, do Pentágono; Hollande foi deixado lá, ante uma garrafa de Moet azedo. Nos dois, na Síria e no Líbano, Paris desavergonhadamente faz um jogo neocolonial de tapas e beijos, enquanto divide o leito com Israel e a Casa de Saud.

Mas por que mais uma vez dar um tiro no próprio pé? Paris perdeu muito dinheiro – além de empregos franceses, via a empresa Peugeot, fabricante de carros – por causa da demência das sanções contra o Irã.

Bandar bin Sultan
por Kerry Waghorn
Ah, mas sempre há a sedução do chefe da inteligência saudita príncipe Bandar bin Sultan, codinome Bandar Bush, e das petromonarquias do Golfo. Em resumo: Bandar Fabius só fez prestar-se a moleque de recados da Casa de Saud. O preço: contratos militares gigantes – aviões, navios, sistemas de mísseis – e a possível construção de usinas nucleares na Arábia Saudita, negócio semelhante ao que a gigante francesa de energia Areva acertou ano passado com os Emirados Árabes Unidos.

O fantasma de Montaigne deve estar gemendo; a França já não tem graça. O Irã não tem direito a usinas nucleares, mas a França constrói e opera várias delas para seus clientes wahhabistas.

O ocidente fazendo servicinhos para Israel faz sentido; afinal, Israel também pode ser descrita como um porta-aviões ocidental metido no coração do Oriente Médio árabe. Quanto à França fazendo servicinhos para os wahhabistas, é só seguir o dinheiro – da Veolia de construções e usinas de desalinização de água na Arábia Saudita, a todos aqueles jatos Rafale a serem despachados.

O Qatar, aquele paraíso de patrões do trabalho escravo presenteado pela FIFA com uma Copa do Mundo, já investiu mais de US$15 bilhões – e aumentando – na França, de ações da Veolia e do mamute Total de energia, à empresa Vinci, de construções; à Lagardere, gigante das comunicações, e ao controle total do Paris Saint Germain de futebol, lar do novo Rei de Paris, o ícone do futebol Zlatan “Ibracadabra” Ibrahimovic. Para nem dizer que o Qatar já é proprietário de virtualmente todas as polegadas quadradas que interessam entre a Madeleine e a Opera, em Paris.

François Hollande
por Kerry Waghorn
Hollande é piada. Essa semana, está na capa do semanário Courrier International (manchete: “A Arte da Queda”), com a mídia paneuropeia chamando-o de “incoerente”, “paralisado” e “incompetente” (para ficar só nos epítetos generosos). Na edição de fim-de-semana do Le Figaro, do establishment, estava sendo destruído, por conta do mais recente rebaixamento da avaliação do crédito da França, pela Standard & Poor’s.

Rei Sarko 1º – codinome ex-presidente Nicolas Sarkozy – deve estar nas nuvens; Hollande é hoje o presidente mais impopular de toda a história da França. Paris continua ótima – mas mais para hordas de turistas emergidos dos mercados emergentes, não para hordas de parisienses desempregados.

Chamem Bandar Fabius para nos salvar! O dinheiro das petromonarquias do Golfo é a salvação! Em tese, o show de “independência” em Genebra deve traduzir-se em bilhões de euros em contratos e investimentos. Também ajuda que Hollande, “o incompetente”, fará visita oficial a Israel nos próximos dias.

O tal pivô na direção da Pérsia

Alain Gresh
Desistam de encontrar razões para aquele “show de independência” na grande mídia francesa, exceto no blog de Alain Gresh do Le Monde Diplomatique.

As explanações são absolutamente patéticas. A França “está sozinha contra todos”; mostrou “responsabilidade”; “reafirmou sua independência”. E, claro, a culpa é toda de Kerry que, dizem, “apareceu com um texto que ninguém vira antes”. Cada figurante movimentou-se para apresentar Fabius (dos “Israel em primeiro lugar”) como salvador. Mas o Eliseu fez saber que Fabius apenas obedecia ordens de Hollande – as quais, em tese, significaram renegociar “os pontos fracos” do acordo. Na essência, é Hollande, o “incompetente”, tentando mostrar a Obama, que tem colhões.

Paris tenta fazer crer que o problema do acordo teria a ver com o reator de água pesada de Teerã, em Arak, e com os seus estoques de urânio médio-enriquecido. Diplomatas de EUA e Irã trabalharam duro para chegar a um acordo: Teerã continuaria a construção do reator durante os seis meses de vigência do acordo provisório, mas só faria testes com água comum e falsos bastões de combustível.

Kerry estava trabalhando nisso, até que Fabius intrometeu-se fantasiado de pavão, numa longa sessão que avançou pela madrugada de sábado. Foi o que levou o ministro Zarif do Irã a observar, com ironia, que o P5+1 (EUA, Grã-Bretanha, França, Rússia e China + a Alemanha) precisava negociar uns com os outros, antes de negociar com o Irã.

John Kerry
A confusão dentro do P5+1 pode comprometer gravemente a próxima rodada de negociações em Genebra. E Kerry, não se sabe se percebeu ou não, deu jeito de mudar a própria narrativa, para algo ainda mais teatro do absurdo: agora se pôs a culpar o Irã pelo não acordo. É como se, depois de ter lido os jornais franceses, tivesse decidido pagar pelos próprios pecados.

Pode-se argumentar que o Irã provou à “comunidade internacional”, a outra, a real, de carne e osso, que deseja um acordo e está disposto a negociar. Mas há ainda as sanções a serem aprovadas pelo Congresso dos EUA – sabotagem de facto, norte-americana, interna. Mas são sanções contra terceiros, pelas quais outros países são punidos pelos EUA, se comerciarem com o Irã. Ninguém as levará a sério, a começar pelas potências asiáticas, Turquia e Rússia.

Por hora, nenhum acordo pode até parecer melhor que um mau acordo. Pode acontecer na próxima reunião em Genebra, dia 22/11. O mais provável é que aconteça um acordo provisório completo, dentro de poucos meses. O governo Obama deseja um acordo. E a França, apesar da pose, é irrelevante.

Pior. Paris está sendo “cega” e “estúpida” – aproveitando as palavras de Kerry – por afastar as empresas francesas, no setor de energia, energia nuclear e manufatura, das possibilidades fabulosas que viriam com a normalização das relações entre o Irã e o ocidente. Se a gangue de Hollande espera ser “salva” pelos wahhabistas, deve ter tomado mescal.

Talvez leve anos – e levará. Mas Washington inevitavelmente encontrará algum tipo de acomodação com o Irã. As empresas norte-americanas querem isso. O ocidente, desesperadamente carente de energia, deseja isso. Até o complexo da hiperpotência norte-americana quer isso – por que lhe abrirá forte deriva rumo ao sudoeste da Ásia, e dali adiante. O eixo do medo e do ranger de dentes de Israel, Casa de Saud e França pode fazer-se de estraga prazeres – mas só por pouco tempo. “Pivô para a Ásia”? Só depois de um pivô para a Pérsia.

[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista político do blog Tom Dispatch e correspondente das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
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