sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

A saga Snowden anuncia mudança radical no capitalismo

26/12/2013, [*] Evgeny Morozov, Financial Times
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

USA Spy & Co.
Depois das revelações, esse ano, sobre os excessos de Washington na espionagem, Edward Snowden enfrenta agora onda crescente de “fadiga da novidade” da vigilância, entre o grande público – e, isso, porque o empregado terceirizado da Agência de Segurança Nacional que se autoconverteu em “apitador-alertador” revelou quantidade imensíssima de verdades desconfortáveis sobre como funciona o mundo nos nossos dias. 

Infraestrutura técnica e poder geopolítico; consumismo rampante e vigilância absoluta, total; a retórica sublime-delirante da “liberdade da internet” e a dura realidade do controle sempre crescente sobre a internet – todas essas são vias interligadas que a maioria de nós nem perceberá ou considerará com atenção. Em vez disso, nos focamos num único elemento dessa longa cadeia – o estado que nos espiona – e ignoramos todos os demais.

Mas o debate sobre a espionagem foi rapidamente circunscrito, estreitado, e convertido em debate insuportavelmente técnico; questões como a consistência da política externa dos EUA; o futuro ambivalente do capitalismo digital; a relocação do poder, de Washington e Bruxelas, para o Vale do Silício – nenhuma dessas questões recebeu a devida atenção. 

"Os EUA nos espionam e nos roubam"
Fato é, contudo, que não só a Agência de Segurança Nacional dos EUA está quebrada: o modo como fazemos – e pelo qual pagamos – as nossas comunicações também está quebrado. 

E foi quebrado por razões políticas e econômicas, não só por razões “de lei” e tecnológicas: muitos estados, desesperados por dinheiro e carentes de imaginação infraestrutural, entregaram as suas redes de comunicação, rendidas, um pouco cedo demais, a empresas de tecnologia.

Snowden criou uma abertura para um muito necessário debate global que poderia ter iluminado várias dessas questões. Infelizmente, esse debate nunca começou. 

As revelações de que os EUA são viciados em vigilância só receberam resposta desbotada, unidimensional. Grande parte dessa retórica superaquecida – não raras vezes com tintas de antiamericanismo e canalizada para modalidades improdutivas de reformas – foi até agora inútil. Muitos governantes estrangeiros ainda se agarram à fantasia de que basta(ria) que os EUA lhes garantam um acordo de não espionagem, ou, pelo menos, a promessa de que pararão de monitorar os seus equipamentos e sistemas, para fazer sumir as perversões que Snowden revelou. 

Nesse ponto, os políticos estão cometendo o mesmo erro que o próprio Snowden comete: em suas raras, mas sempre consistentes manifestações públicas, Snowden sempre atribui os erros e vícios ao alcance desmesurado das agências de inteligência. Parece que, ironicamente, nem o próprio Snowden tem consciência clara do que encontrou e revelou. 

Complexo de Espionagem e instalações da ASN em Fort Meade, Maryland
Não se trata de abuso por instâncias isoladas de poder, que se possa corrigir com novas leis, mais controle sobre os espiões, novas ferramentas que zelem pela privacidade, e com súplicas, pelo estado, às empresas de tecnologia, para que se façam “mais transparentes”. 

É claro que tudo isso tem de ser feito: são os frutos políticos mais acessíveis, que todos sabemos como alcançar e colher. No mínimo, essas medidas criarão a impressão de que algo está sendo feito. 

Mas de que servirão essas medidas, para conter a tendência muitíssimo mais perturbadora, que já mostra que informações pessoais sobre nós mesmos – muito mais que o dinheiro – estão já convertidas em “moeda” que paga por serviços e em breve, talvez, também, pelos bens indispensáveis à vida diária? 

Não há lei nem ferramenta que proteja os cidadãos que, inspirados pelos contos de fadas do empoderamento do Vale do Silício, correm a converter-se em empresários “de dados”, sempre à procura do meio mais novo, mais rápido, mais lucrativo para monetarizar os próprios dados – seja informação sobre os próprios hábitos de compra, ou cópias do próprio genoma. Esses cidadãos querem ferramentas que os capacitem para abrir cada vez mais os próprios dados, não para escondê-los. 

Agora, quando cada dado ou fragmento de dado, por trivial que seja, também é capital disfarçado, só falta encontrar o comprador certo. Ou é o comprador que encontra o dado certo – e o respectivo proprietário – e oferece-se para criar um serviço convenientemente pago, a ser pago com aqueles dados. Esse, aliás, parece ser o modelo Google combinado ao g-mail, o serviço de correio eletrônico da mesma empresa.

Edward Snowden
O que Snowden parece não ver – nem ele nem seus detratores e apoiadores – é que é possível que estejamos passando por uma transformação no modo como o capitalismo opera: dados pessoais aparecem aí como um regime alternativo de pagamento. 

Os benefícios para o consumidor já são óbvios; os custos potenciais para os cidadãos, esses, absolutamente não são claros. Ao mesmo tempo em que proliferam os mercados de compra e venda de informações pessoais, também proliferam as externalidades. E a democracia é a principal vítima.

Nada sugere que a transição em curso, de dinheiro para dados, venha a enfraquecer o poder & mando da Agência de Segurança Nacional dos EUA. Ao contrário! É possível que se criem intermediários mais fortes e em maior número, todos unidos para manter e ampliar o mesmo vício, a mesma obsessão por mais e mais dados. 

Por isso, se quiser escapar da obscuridade do gueto legalista do debate sobre a privacidade; e para que continue relevante e ganhe pegada (e dentes) políticos, é indispensável que o debate sobre vigilância seja linkado ao debate sobre o capitalismo.

O CUSTO da espionagem e da NSA é ESCONDIDO do povo dos EUA
Há outras dimensões nisso tudo, também esquecidas ou subestimadas, e também cruciais. Não teríamos, nós, de criticar muito mais os argumentos trazidos à baila pela Agência de Segurança Nacional e outras agências, segundo os quais precisa(ria)m daqueles dados que coletam, para agir preventivamente sobre os problemas? 

Não devemos deixar passar sem criticar a ideia de que a prevenção (só porque parece ser hoje a ideia mais barata), substitui(ria) completamente todas as tentativas mais sistemáticas para identificar as origens do problema que temos de resolver, muito mais do que apenas impedir que aconteça hoje. 

Só porque as agências de inteligência dos EUA tanto se empenham para um dia ter mapeadas todas as crianças do Iêmen, porque entendem que elas manifestem tendência inata para explodir aviões, não implica que os EUA estejamos dando a devida atenção à fonte da insatisfação infantil iemenita: uma das quais pode ser o uso alucinado de drones para matar os pais e mães daquelas crianças. 

Infelizmente, essas questões não estão na agenda atual, em parte porque muitos de nós compramos a narrativa simplória – conveniente para Washington e para o Vale do Silício – de que só nos faltam mais leis, mais ferramentas, mais ‘transparência’. 

O que Snowden revelou ao mundo é a nova tensão nos pilares que dão/davam sustentação ao capitalismo e a vida democrática como os conhecemos. Para resolver os novos problemas é preciso um pouco mais de imaginação.
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[*] Evgeny Morozov nasceu em 1984 na Soligorsk, Bielorrússia. Frequentou a American University na Bulgária e mais tarde viveu em Berlim antes de se mudar para os Estados Unidos onde foi aluno-visitante na Stanford University. Atualmente é associado da New America Foundation e editor colaborador-blogueiro (blog New Effect) da revista Foreign Policy. Colabora com o noticiário do Yahoo!; é professor visitante na Georgetown University’s Walsh School of Foreign Service; associado do Open Society Institute; diretor de novas mídias da ONG Transitions Online e colunista do jornal russo Akzia.
Artigos de Morozov têm sido publicados em vários jornais e revistas em todo o mundo, incluindo The New York Times, The Wall Street Journal, Financial Times, The Economist, The Guardian, New Scientist, The New Republic, Corriere Della Sera, Times Literary Supplement, Newsweek International, International Herald Tribune, Boston Review, Slate e San Francisco Chronicle. 
Neste ano de 2013 está obtendo o título de Ph.D. em História da Ciência em Harvard.

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