quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Obama e duas entrevistas afegãs

3/2/2014, [*] MK Bhadrakumar, Indian Punchline
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Hamid Karzai discursando em 4/5/2013
O que mais se vê na entrevista do presidente afegão Hamid Karzai ao jornal britânico The Sunday Times é a total ruptura no vínculo de confiança Afeganistão-EUA. Karzai revela, e é chocante, que Obama não trocou uma palavra com ele, nos últimos 7-8 meses, e que quando seus caminhos cruzaram-se no funeral de Mandela, recentemente, Obama virou a cara.

E Karzai, afinal, é presidente de um país onde estão dezenas de milhares de soldados norte-americanos, e onde Washington alardeia ter gasto $648 bilhões numa guerra, só até aqui. É erro e fracasso colossais, do líder de uma superpotência. A razão pela qual um homem conhecido por ser “cerebral”, como Obama, age de forma tão emocional-petulante escapa a qualquer exame racional.

Se não se incomoda com as repetidas visitas que faz ao rei Abdullah, nem se incomoda de receber na Casa Branca uma fila interminável de ditadores ensandecidos do Oriente Médio Expandido, por que tanta arrogância no que tenha a ver com Karzai? Porque os afegãos são povo orgulhoso e o autorrespeito deles tem de ser derrubado pelo porrete norte-americano?

A resposta é simples – Obama está zangado com Karzai. E quando o presidente dos EUA fica zangado, ele emudece; e seus olhos tornam-se glaciais – como os de Margaret Thatcher –, como revela o ex-secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates, nas fascinantes memórias que acaba de publicar, sobre o governo Obama. Ao não falar com Karzai, Obama avisa ao mundo que está zangado.

A questão das relações EUA-Afeganistão está, inteira, no romance clássico de E.M. Forster, Uma passagem para a Índia. A quebra das relações, hoje, é tanto histórica e cultural quanto política, como Karzai trabalha para explicar na entrevista ao The Sunday Times.

Os norte-americanos pressupõem, levianamente, que tão logo Karzai saia de cena depois das eleições de abril, haverá em Kabul uma multidão de políticos que servilmente servirão à agenda dos EUA. Outra recente entrevista, essa de Abdullah Abdullah ao jornal The Hindu, mostra que sim, há esses políticos, ou, pelo menos, alguns.

Abdullah mal se aguenta de ansiedade; quer correr a apor sua assinatura na linha pontilhada do Acordo de Segurança Bilateral EUA-Afeganistão; regrediu à retórica anti-Paquistão da era Ahmed Shah Massoud; quer fazer qualquer coisa, tudo, não importa o quê, desde que... Ah! Desde que o prêmio seja a presidência de seu país! Obama pode ajudá-lo?

É onde os EUA erram as contas. Só pensam em fixar lá as bases militares, custem elas o que custarem; e estão fechando os olhos para as realidades mais flagrantes. O álibi dos EUA hoje é a Al-Qaeda – deixou de ser os Talibã.

Analistas de inteligência dos EUA como Bruce Riedel só fazem insistir numa tese simplória, segundo a qual a al-Qaeda logo reaparecerá, tão logo os soldados dos EUA saiam do Afeganistão. Para eles, isso teria acontecido no Iraque.

Bruce Riedel
Ora, tudo aí é travestir a verdade, falsificação deliberada dos fatos. O principal fator por trás do reaparecimento de afiliados da al-Qaeda no Iraque é a desestabilização da Síria – na qual os EUA tiveram grande papel. Para saber, bastaria que Riedel entrevistasse o então diretor da CIA, David Petraeus, para informar-se sobre sua missão secreta em Ancara, em março e setembro de 2012. 

Não. Riedel inverteu os fatos, meteu-os de cabeça para baixo.

A instabilidade na Síria e o uso de grupos islamistas pelos EUA e pela Arábia Saudita para abastecer a agenda da mudança de regime trouxeram com eles, inevitavelmente, a al-Qaeda; e agora os radicais espalharam-se também para o Iraque e o Líbano. A parte trágica é que Obama sempre soube de tudo isso e não pode fugir à responsabilidade por tudo que hoje se vê.

Assim também, a realidade em campo não poderá ser ocultada nem por um milhão de pesquisas de opinião pagas pelos norte-americanos, nem pelos gatos gordos afegãos (que receberam dinheiro dos EUA e prosperaram nos anos de guerra, e agora querem que os EUA continuem por lá por toda a eternidade): o povo afegão não admitirá nenhum tipo de ocupação estrangeira no Afeganistão.v

Hoje, Barack Obama dá as costas para Hamid Karzai
A continuada ocupação por forças de EUA-OTAN é receita para que a guerra continue – continuação que interessa ao movimento de ‘pivô’ dos EUA para a Ásia. A presença continuada dos militares dos EUA no Afeganistão significa que o Paquistão será mantido em torvelinho e agitação sem fim, e que não se vê fim no perigoso deslizamento daquele país rumo à anarquia. O impacto cumulativo de tudo isso sobre a segurança e a estabilidade regionais pode ser calamitoso para todos, também para a Índia.

Em certo momento da entrevista, Karzai praticamente suplica que os EUA deixem em paz os afegãos. Impossível não se sentir solidário com ele.


[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The HinduAsia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.


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