segunda-feira, 3 de março de 2014

Conflicts Fórum: Comentário semanal de 14 a 21/2/2014

1/3/2014, [*] Conflicts Forum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

O presidente libanês, Michel Suleiman (C) reunião com Presidente do Parlamento Nabih Berri (E) e primeiro-ministro designado Salam Tammam no palácio presidencial em Baabda antes de anunciar a formação do novo governo libanês após um vácuo de 10 meses. (Foto: Dalati e Nohra)
Há novo governo no Líbano – embora ainda não tenha recebido o voto de confiança do Parlamento nem tenha feito, de fato, uma Declaração Ministerial de política de governo. O novo governo tem 30 dias para construir um consenso dos seus objetivos e declará-los oficialmente (tarefa difícil, nos tempos atuais, tão polarizados), e obter o apoio do Parlamento – ou o governo será declarado “vacante” (tecnicamente, o equivalente a governo que renunciou).

Depois de onze meses sem governo empossado e com poder (o governo administrativo tem capacidades mínimas), esse desenvolvimento positivo foi muito bem recebido aqui no Líbano.

Mas, isso posto, esse governo terá vida curta (e mesmo que obtenha o voto de confiança do Parlamento): em maio haverá eleições presidenciais no Líbano e ninguém sabe por aqui se será possível eleger algum presidente – questão muito discutível atualmente. Mas o importante é que qualquer sucesso, ainda que relativo, desse governo “experimental”, pode facilitar a eleição do presidente. Ao contrário, se fracassar, as perspectivas tornar-se-ão ainda mais turvas.

O novo governo é, realmente, um experimento. E há gente, aqui no Líbano, surpreendida (e aflita) pelos muitos riscos inerentes a esse experimento. Dito mais claramente, o novo governo deve ser entendido como um “piloto”, ou um barômetro, para algum “entendimento” sobre a Síria. Ou, ampliando um pouco mais a ideia, uma medida para construir confiança com vistas a algum acordo regional ainda a ser desdobrado.

O Líbano várias vezes fez esse papel de “canário-de-mina” (para indicar se o ar é seguro e respirável, ou se há alta concentração de gases venenosos na atmosfera). Esse governo “canário-de-mina” fará, efetivamente, exatamente a mesma coisa.

Assim sendo, o que há de tão significativo sobre esse novo governo? [1] Em primeiro lugar e sobretudo, o novo governo inclui o Hezbollah (que deliberadamente não procurou obter qualquer pasta peso-pesado no Gabinete, no atual alinhamento). Não esqueçamos que, há bem pouco tempo, o ex-primeiro-ministro Saad Hariri havia vetado qualquer arranjo de governo que incluísse o Hezbollah. Essa flagrante virada não pode ter acontecido sem, pelo menos, a tácita aprovação de Riad. E em segundo lugar, os partidos do movimento 14 de Março – mas, muito especialmente, Sayed Hassan Nasrallah – concordou com inverter, completamente, a tradição política libanesa. [2]

Crianças sírias entoam slogans anti-Exército Sírio Livre e portam cartazes com Secretário-Geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah e bandeiras iranianas na área de Sayyida Zeinab de Damasco, 10 de fevereiro de 2014. (Foto: Alaa Al-Marjani
Ao longo dos anos, o Hezbollah e seus aliados cuidaram de manter a capacidade para influir na esfera da segurança (considerada a sempre presente ameaça israelense), enquanto o campo do Movimento 8 e Março sempre se interessou por controlar as lucrativas alavancas econômicas e financeiras dos negócios e do Estado. Neste mais recente arranjo de novo governo, isso tudo aparece invertido.

É interessante que o Hezbollah e seus aliados tenham-se focado agora mais nos ministérios da Energia e das Finanças, exatamente quando o Líbano está para implantar sua Zona Econômica Exclusiva [orig. Exclusive Economic Zone (EEZ)] em águas territoriais, para exploração de gás e petróleo, na expectativa de que o Líbano possa usufruir de fatia significativa do imenso potencial da Bacia do Levante no Mediterrâneo Leste [orig. East Mediterranean Levant Basin].

Interessante também que, no momento em que o Líbano está sob ameaça de sunitas extremistas, os postos chaves da segurança, como os ministérios do Interior e da Justiça, sejam entregue ao Movimento 14 de Março – não só ao Movimento, mas, também, a um empenhado ativista anti-Assad (como o ministro da Justiça). Não surpreende que alguns tenham estranhado que Hassan Nasrallah e o Hezbollah tivessem aceitado tal arranjo.

É um teste; um experimento. Dá aos sunitas libaneses (do partido de Hariri) a responsabilidade por enfrentar o extremismo sunita que emana da Síria: caberá a eles proteger o Líbano contra os suicidas-bomba takfiri que caem sobre o Líbano como praga. Em apenas dois anos, as vendas de varejo em Beirute caíram mais de 1/3, porque pouca gente se arrisca a andar pelas ruas. Os sunitas libaneses darão conta do recado?

Não é difícil compreender a significação mais ampla desse movimento: a Arábia Saudita afinal concordou com a formação de um governo de unidade. Hassan Nasrallah e o general Aoun (que teve papel importante em tudo isso), estão agora respondendo ao gesto dos sauditas, reconhecendo os temores dos sunitas e a posição vulnerável em que são postos, por conta do envolvimento dos xiitas na Síria – o que não implicará em o Hezbollah ter de desistir do seu envolvimento na Síria. [3] O Hezbollah retribuiu, concordando em dar aos sunitas do Movimento Futuro controle efetivo sobre o próprio ambiente deles. É notável gesto de inteligência política para tranquilizar os sunitas do Líbano, mas também é medida para construir confiança, apostando que Riad pode vir a pensar sobre um acordo na Síria.

Claro, o risco é que o experimento pode ser mal usado – pode acontecer de não facilitar acordo nenhum na Síria, e, para piorar, pode levar a uma escalada da violência no Líbano. Mas, se esse “canário” iraniano-saudita permanecer vivo e com boa saúde, pode servir para pavimentar a via para compreensão semelhante na Síria. Dão-se garantias de segurança aos sunitas sírios (aqui, falamos dos sunitas sírios não alinhados com o governo e que temem a influência dos xiitas; de fato, a maioria dos sunitas sírios não se sente vulnerável aos xiitas, nos quais, em alguns sentidos, veem aliados; eles só temem os extremistas takfiri). Nesse quadro, a evidência de que passa a caber à comunidade sunita dominante na região a tarefa de combater os jihadistas, pode bem ser o movimento que leve a um “entendimento” político também na Síria. Teremos de esperar para ver o que acontece.

Há alguma possibilidade de tudo isso tornar o Líbano mais estável?  infelizmente, não.

O primeiro-ministro Salam Tammam do Líbano (C) entra no palácio presidencial em Baabda, perto de Beirute, 15 de fevereiro de 2014. (Foto: Mohamed Azakir
Aqui, é importante entender como o jihadismo na Síria está evoluindo.

Os salafistas estão no processo de uma definição radical da doutrina. É um desenvolvimento que, se se mantiver, os põe, diretamente, em confronto com a autoridade estabelecida – seja a autoridade do rei Abdallah ou qualquer outra autoridade sunita formal. Em resumo, aquele ramo dos jihadistas takfiri não dará importância alguma a nenhum acordo que por acaso possa ser construído entre Riad, Damasco e Moscou ou Teerã. Eles estão em guerra contra todos os símbolos de autoridade estabelecida na esfera sunita.

Esses movimentos estão-se movendo por uma linha “revisionista” da história do “Estado Islâmico”. Ele não teria surgido em virtude da liderança do Quraish, nem pelos trabalhos do tradicionalismo árabe; nem pelos esforços de qualquer pessoa (um Salahidin, por exemplo). Historicamente, em vez disso, o Estado Islâmico teria surgido como pequenos grupos separados de muçulmanos lutando pelo Islã, que finalmente se teriam unido para formar o Estado Islâmico. Essa rede de “imãs”-combatentes teria representado o legítimo Estado Islâmico, até que se fundiram, para formar uma Umma unificada.

O movimento Da’ish ou ISIS define-se, precisamente, como um estado – seu líder é o líder dos que creem. Combate contra outros movimentos islamistas, porque é um estado, vendo seus rivais potenciais como, simplesmente, uma rebelião contra um braço do Estado Islâmico. Os pilares tradicionais da autoridade saudita (a descida do Quraish, os guardiões de Meca; a mesquita estabelecida, ou al-Azhar) absolutamente nada significam para eles. Não reconhecem a legitimidade de nenhum rei saudita, para falar em nome de “muçulmanos”.

Paradoxalmente, com a Arábia Saudita a fazer guerra contra a Fraternidade Muçulmana por sua doutrina de que a soberania brota do povo, a real ameaça contra a autoridade saudita foi, de fato, incubada dentro do wahhabismo. A família Al-Saud já não controla “sua” esfera, como antes. Aquela esfera está fora de qualquer controle.


Notas de rodapé

[1] 17/2/2014, Al-Akbar, em: Lebanon’s government: A ticking time bomb with regional and international controls (Governo do Líbano: bomba-relógio com controles regionais e internacionais).

[2] 18/2/2014, Al-Monitor, em: Lebanon’s new government based on mutual oversight (Nova composição governista do Líbano está baseada em pontos de vistas mútuos)

[3] 10/2/2014, Al-Monitor, em: Nasrallah: Hezbollah has “right” to wage “pre-emptive war” in Syria (Nasrallah: Hezbollah tem o direito de fazer guerra preventiva na síria”
__________________________


[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.