sexta-feira, 7 de março de 2014

Pepe Escobar: C’mon baby, incendeie o meu incêndio (crimeano)

7/3/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Manifestantes pró-Rússia em frente a parlamento da Crimeia em Sinferopol (6/3/2014)
16 de março é o dia C. O Parlamento da Crimeia – por 78 votos e com oito abstenções – decidiu que naquele dia os eleitores crimeanos escolheram entre integrar-se à Federação Russa ou permanecer parte da Ucrânia, como região autônoma, com poderes muito efetivos, nos termos da Constituição de 1992.

Seja qual for o terremoto “diplomático” que Washington e Bruxelas continuem a estimular, e será incendiário, incandescente, os fatos em solo falam por eles mesmos. A conselho da cidade de Sevastopol – quartel-general da Frota Russa no Mar Negro – já votou pela integração à Rússia. E semana que vem, em Moscou, a Duma [Parlamento] estudará uma resolução para simplificar os procedimentos e mecanismos da adesão.

Recapitulando rapidamente: aí está o resultado direto do gasto de $5 bilhões de Washington – número oficial, fornecido por Victoria “Foda-se a União Europeia” Nuland – para promover a “mudança de regime” na Ucrânia. O que se vê é que a Crimeia pode ser incorporada gratuitamente à Rússia, enquanto o “Ocidente” ficará com o atraso e a bancarrota (Oeste da Ucrânia), do que um leitor de Asia Times Online descreveu, descrição indelével, como o “Khaganato dos Nulands” (reino de Gengis, por exemplo, dentre outros khans), misturado com terra de ninguém, onde reina o marido de Victoria (“Foda-se” etc.) Nuland Kagan. [2]

Arseniy Yatsenyuk
O governo que para Moscou é governo ilegal infiltrado de neonazistas em Kiev, comandado pelo primeiro-ministro  – ucraniano, judeu e banqueiro, no papel de fantoche do ocidente – insiste que a Crimeia deve permanecer como parte da Ucrânia. E não só Moscou: metade da própria Ucrânia não reconhece a gangue de Yats como governo legítimo, agora já impondo inúmeros oligarcas como governadores de províncias.

Esse tal “governo” – apoiado pelos EUA e pela União Europeia – já “declarou” ilegal o referendo. Comprovando suas impecáveis credenciais “democráticas”, eles já proibiram o uso do idioma russo na Ucrânia; já se livraram do Partido Comunista (que recebeu 13% dos votos nas últimas eleições, mais votos, aliás, que o Partido Svoboda [“Liberdade”] infestado de neonazistas, e agora encarregado dos ministérios da “segurança” do novo governo; e também já fecharam uma estação de televisão russa, a qual, por falar dela, é a mais popular das televisões ucranianas a cabo.

No meio de toda a histeria que se vê em Washington e em algumas capitais europeias, o que ninguém explica à engambelada opinião pública é que esses fascistas-neonazistas que chegaram ao poder mediante golpe, jamais permitirão que se façam eleições verdadeiras na Ucrânia; afinal, é praticamente certo que, se houver eleições, eles serão varridos do mapa.

Isso implica que “Yats” e sua gangue – além de já ter sido recebido com tapete vermelho numa pomposa, embora inócua, reunião da União Europeia em Bruxelas – não sairá de onde está. Por exemplo, já usaram força pesada para pôr a correr manifestantes pró-Rússia que se reuniram em frente à sede do governo na cidade de Donetsk. Cidade fortemente industrializada, Donetsk têm muitos laços comerciais com a Rússia.

Grupos de autodefesa da Crimeia em frente ao parlamento em Sinferopol (6/3/2014)
E outro cenário, ainda mais sinistro, já começa a aparecer no horizonte: uma possível instrumentalização da franja de jihadistas lunáticos dos 10% de tártaros que vivem na Crimeia, para tudo: de ataques preparados para serem atribuídos a outros, até suicidas-bomba. A Casa de Saud, segundo sólida fonte saudita, está imensamente interessada na Ucrânia e pode ser tentada a prestar alguns favores à inteligência ocidental.

Nosso amor se converterá em pira funerária? [1]

Pode-se dizer que, para Moscou, é muito melhor negócio manter a Crimeia dentro da Ucrânia, com amplos poderes autônomos, mais o acordo vigente para manter ali a base naval de Sebastopol, que a anexação. É como se a Rússia estivesse anexando o que, para todos os objetivos práticos, já é província russa.

Assim, o Kremlin pode sempre decidir não anexar, e usar o resultado praticamente já decidido do referendo como peão chave numa negociação complexa, não com a União Europeia, mas, fundamentalmente, com a Alemanha. A União Europeia é hoje um saco de gatos. O “governo” em Kiev é só confusão. O que realmente interessa é o que Vladimir Putin está discutindo por telefone com Angela Merkel.

Merkel e Medvedev mais delegações de Alemanha e Rússia abrem a "válvula inaugural" do Nord Stream em 2012
Muita coisa aí tem a ver com o Oleogasodutostão – por exemplo, o Ramo Norte (Nord Stream) de 9 bilhões de euros (EUA $12,4 bilhões), o cordão umbilical de aço que liga Rússia e Alemanha pelo Mar Báltico. Merkel, o então presidente russo Dmitri Medvedev e o ex-chanceler alemão e hoje presidente do Ramo Norte, Gerhard Schroeder, estavam muito próximos e unidos, quando o projeto de gasoduto para levar gás russo até a Alemanha entrou em operação em 2011. O projeto foi inicialmente proposto em 2005, quando Schroeder era chanceler e Putin era presidente da Rússia pela primeira vez. No início dessa semana, Schroeder disse que a OTAN devia calar o bico.

Além de tudo mais, dois terços do comércio entre Rússia e a União Europeia estava, em 2012 (ainda não há dados de 2013), em torno de estonteantes EUA$370 bilhões, com a Rússia exportando, principalmente petróleo, gás e cereais; e a União Europeia exportando, principalmente, carros, medicamentos, componentes de máquinas. Esqueçam todas as sanções, o tal sacrossanto mantra de Washington. Sanções são péssimas para os negócios.

Passagem do oleogasoduto "Nord Stream"da Rússia a Alemanha, via Báltico
Mas Moscou, sim, tem uma real, tangível e muito séria linha vermelha. Não precisa nem se preocupar com a Ucrânia na União Europeia, porque a maioria dos europeus não quer a Ucrânia como membro do clube deles. A linha vermelha é as bases da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na Ucrânia. Moscou pode, inclusive, aceitar que a Ucrânia permaneça como uma espécie de Finlândia, entre a Rússia e a Europa, com a Crimeia ainda dentro da Ucrânia. Uma base da OTAN ali, ao lado da base russa em Sebastopol seria totalmente psicodélico.

Assim sendo, uma decisão na Crimeia – não importa para que lado vá – envia, sim, uma mensagem muito clara, de Moscou para o “ocidente”: prestem atenção à nossa linha vermelha. Diferentes de outros por aí, nós falamos sério. Defenderemos nossa linha vermelha com tudo que temos.

Não é hora de chafurdar em conversa fiada [1]

Primeiro, o presidente Barack Obama dos EUA declarou solenemente que o referendo na Crimeia “viola (ria) a lei internacional” (mas o Kosovo, sim, pôde separar-se alegremente da Sérvia, em 2008, com ruidosa comemoração em Washington).

E, isso, depois de ele ter declarado a Crimeia “ameaça extraordinária à segurança e à política externa dos EUA”. O que mais falta?! Nacionalistas da Crimeia invadirem o Iowa? Não, não. É ardil da Casa Branca, para iniciar a usual guerra financeira.

E tudo isso, quando a mais brilhante “estratégia” da equipe Obama – continuar a demonizar Putin até o Juízo Final – estava atingindo o clímax.

A "estratégia" dos EUA é sempre a mesma: DEMONIZAR Putin
Mas foi quando Obama – percebendo que Angela Merkel estava roubando para ela todos os holofotes – telefonou a Putin e ficou por quase uma hora tentando “engajar” o homem. Por que, diabos, tão súbita mudança de sentimentos?

Uma possível resposta pode vir do inescapável Dr. Zbigniew “O Grande Tabuleiro de Xadrez” Brzezinski, ex-conselheiro de segurança nacional de Jimmy Carter, aquele Hamlet caipira; o homem que deu aos sovietes “o Vietnã deles”; o homem que sempre sonhou que os EUA deveriam reinar sobre a Eurasia; e principal mentor “invisível” de Obama para sua política externa.

Zbigniew Brzezinski
Como o Dr. Zbig disse a Nathan Gardels do World Post, “A estratégia do ocidente nesse momento deve ser complicar o planejamento de Vladimir Putin”. Ora... Não funcionou muito bem, né-não? Então vem o Dr.  Zbig e diz que “a OTAN deve convidar os russos a participar das discussões em andamento”. Não funcionou.

Dr. Zbig foi firme: “temos de reconhecer formalmente o novo governo na Ucrânia, o qual, creio, manifesta o desejo do povo de lá”. Na verdade, o desejo de talvez metade da nação, se tanto. “Interferência nos negócios da Ucrânia será considerado ato hostil por potência estrangeira”. Era o que Obama tinha na cabeça. Até que telefonou para Putin.

O Dr. Zbig ficou ainda mais apocalíptico, e disse que “Temos de pôr em operação os planos de contingência da OTAN, deslocar forças na Europa Central, para estarmos em posição de responder, no caso de a guerra eclodir e espalhar-se”. Não surpreende que a imprensa-empresa nos EUA tenha entrado em surto de total piração.

Mas foi quando o Dr. Zbig recuperou a sanidade: “A melhor solução para a Ucrânia será tornar-se o que a Finlândia foi para a Rússia”. Assim sendo, no final, ele parece ter sugerido a Obama “uma solução de compromisso que seja aceitável para a Rússia e para o Ocidente”. E que envolverá “ajuda econômica e investimento sérios”. E adivinhe quem deve liderar, garantindo o dinheiro? “A Alemanha, a economia mais próspera e mais forte da União Europeia”.

Assim sendo, no fim, voltamos, mais uma vez, ao que Angela e Vlad já discutem há tempos. É a finlandização? Ou é só questão de decidir quem tenta incendiar a noite?
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Notas dos tradutores

[1] “Light my fire” é verso e título de The Doors, 1967. Versos traduzidos em Acenda meu fogo”.

[2] Ver Khanate ou Khaganate. Há aí também um eco semântico, audível para falantes de português e espanhol: “cagar” é variante (muito) chula, para “defecar”. Mas o Urban Dictionary registra o verbete cagada, no inglês norte-americano, provavelmente, pelo espanhol, com o mesmo significado que tem em português e espanhol.
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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
 Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.

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