segunda-feira, 21 de julho de 2014

Putin: a hora do revide

20/7/2014, [*] MK Bhadrakumar, Indian Punchline
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

O passarinho acordou cedo...
Passarinho que acorda cedo pega a minhoca dormindo, e alguém que, como o presidente dos EUA Barack Obama foi criado nos trópicos do Havaí e da Indonésia, deveria saber disso melhor que seu “parceiro” russo, Vladimir Putin, homem de Leningrado. Mas a alacridade com que Obama pôs-se a cantar, na guerra de propaganda contra Moscou por causa da Ucrânia, quase faz parecer que Obama já estivesse à espera que aquela tragédia horrível acontecesse. Até agora, Obama ainda não conversou com Putin pelo telefone – nem mesmo para se informar sobre os fatos mais elementares. 

É perfeitamente diferente do que fizeram a chanceler alemã Angela Merkel e os dois estadistas mais afetados na tragédia do malsinado avião malaio – o primeiro-ministro holandês Mark Rutte e o primeiro-ministro malaio Najib Razak. Rutte, na verdade, já discutiu a tragédia duas vezes com Putin; e ambos concordaram, seguindo sugestão de Putin, com iniciar imediatamente “investigação independente, aberta e justa” sobre o trágico evento em Donetsk, a ser coordenada pela Organização Internacional de Aviação Civil, com a participação de “todas as partes envolvidas”; e, para tanto, propor “um cessar-fogo imediato e incondicional” no leste da Ucrânia.

Vladimir Putin e Mark Rutte 
Será que Obama também concordará com essa abordagem? Até aqui, Merkel e Razak concordaram prontamente com Putin. Mas o problema é que cessar-fogo na Ucrânia é o que menos Obama quer – o vice-presidente Joe Biden não faz outra coisa, senão pressionar o presidente Petro Poroskenko para que ataque com fúria a tal região rebelde de Donetsk, de modo que a região alcance logo o ponto de ruptura, sem volta, nas relações entre Rússia e Europa, já muito precárias.

É verdade que Moscou perdeu para Washington a guerra de propaganda. Washington está completamente de volta aos tempos de Guerra Fria. Os EUA sempre estiveram quilômetros à frente da União Soviética na caça à minhoca que dorme da propaganda – na crise dos mísseis cubanos, no Afeganistão ou em Dr. Jivago de Boris Pasternak.

Minha opinião é que a Rússia tem culpa nisso. É o que acontece em casa dividida. Já é bem visível para qualquer observador de longo prazo, que Moscou está sendo puxada simultaneamente em direções opostas por chamados “ocidentalistas” e chamados “orientalistas” (e os “orientalistas” ultimamente, “na encolha”). A crise da Ucrânia teria de servir como sinal de alerta.

O caso é que a história não acabou, e a Rússia não pode, nem jamais poderá ser parte do mundo ocidental. A Rússia é grande demais e diferente demais e poderosa demais e inadministrável demais. A presença da Rússia na tenda europeia desafia a liderança trans-Atlântica dos EUA e questiona a própria razão de ser da OTAN e, de fato, faz sumir até o euro-atlanticismo como o leitmotif das estratégias globais dos EUA.

Vladimir Putin e Nagib Razak
É hora de os “ocidentalistas” que haja nas elites de Moscou se aperceberem de que estão vivendo um sonho cachimbado. Não há precedente de os EUA, em tempo algum, terem jamais tratado qualquer outro país – nem a Grã-Bretanha – em pés de igualdade. Assim sendo, o destino da Rússia é ditado pela necessidade de consolidar a própria posição como player global independente. A Rússia tem capacidade para fazer isso, mas, infelizmente, nem sempre tem suficientes desejo de e interesse em discernir com precisão quem é seu potencial aliado e quem não é.

É o que faz, do telefonema do presidente do Irã, Hassan Rouhani para o presidente Putin, ontem, o mais esplendoroso dos eventos, para quem observe a Rússia. Claro que Rouhani não mencionou a Ucrânia. Surpresa seria, se tivesse mencionado.

É momento pungente nas relações Irã-Rússia. O Kremlin cooperou com o governo Obama no espírito do hoje já mal-afamado, infame “reset” EUA-Rússia, para bater os pregos no caixão do Irã e isolá-lo, num momento em que o país estava encurralado, de costas contra a parede. Claro: eram tempos em que os “ocidentalistas” em Moscou comandavam o minueto, viviam inchados de autoconfiança de que estavam “acertando as coisas” com Obama, mastigando cachorros-quentes e fazendo circular o Qi-vital em ondas de Coca-Cola. Todo o planeta parecia uma lanchonete de burgers. 

Agora a roda completou a volta. O “reset” aí está, desmascarado como piada macabra que o governo Obama aplicou àquela gente do Kremlin. E a ironia mãe de todas as ironias é que a Rússia hoje está sendo ameaçada por uma avalanche de sanções, pelos EUA, se não se comportar bem no caso da Ucrânia. É como o Irã era ameaçado até o ano passado.

Vladimir Putin e Hassan Rouhani
E, é, Rouhani não falou de Ucrânia com Putin. Mas deixou muito com que Moscou nutrir o pensamento. O ponto é que, só por se mostrar amiga sincera e parceira estratégica do Irã nesse ponto dos acontecimentos, quando as conversas EUA-Irã estão tão bem paradas, Moscou pode virar a mesa sobre Washington e atingir os guerreiros da guerra fria no ponto em que mais lhes dói.

É bem visível que a mão dos EUA está enfraquecendo em relação a Teerã. Não é possível voltar ao marco zero (ao ponto de antes de as conversações terem começado); ataque militar ao Irã não é exequível; se as conversações fracassarem, Teerã reiniciará seu programa nuclear a pleno vapor, como melhor entenda. Para resumir: o Irã furou o cerco em que os EUA o mantiveram preso. Esse é o significado de o prazo final para o acordo nuclear com o Irã ter sido estendido para além do 20/7/2014. É isso. Ponto. Parágrafo.

Agora, a Rússia pode picar em pedacinhos e jogar na lata de lixo o sistema de sanções dos EUA contra o Irã. Basta simplesmente expandir em toda sua enorme capacidade as relações com aquele país — pode ser no campo da energia ou da cooperação de defesa. Afinal de contas a única coisa que a Rússia prega é que só se apliquem sanções da ONU. Dito em palavras mais simples, é só pôr em prática o que Moscou prega.

Além do mais, será fazer a coisa certa também do ponto de vista dos negócios: chegar a Teerã antes das empresas norte-americanas.

Dito de outro modo, é obrigar os EUA a negociarem em estado de desespero, com um Irã que tenha integral apoio da Rússia. E a Rússia não estará em confronto com os EUA; estará simplesmente aprofundando e ampliando relações com país amigo.

Iran Air voo 655 derrubado pelos EUA
(clique na imagem para aumentar)
O resumo de tudo é que os iranianos farão os norte-americanos suarem, e recuperarão o dinheiro iraniano. De modo algum Teerã desistirá do seu gigantesco patrimônio de centenas de bilhões de dólares que os EUA confiscaram logo depois da queda do Xá; foi assalto de gangue de beira-de-estrada. Nem o Irã jamais esquecerá que os norte-americanos derrubaram deliberadamente um avião iraniano de passageiros em 1988 – sabendo perfeitamente que se tratava de avião civil – e mataram 300 passageiros.

Meu primeiro contato com o Irã, como diplomata de carreira aconteceu em 1989. Estive tantas vezes naquele país, que perdi a conta. Se bem conheço o meu Irã, posso dizer o seguinte: Rouhani telefonou a Putin para definir a política mundial contemporânea.



[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Oriente Médio, Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de geopolítica, de energia e de segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Ásia Times Online, Al Jazeera, Counterpunch, Information Clearing House e muitas outras. Anima o blog Indian Punchline no sítio Rediff BLOGS. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala, Índia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.