domingo, 21 de setembro de 2014

Iêmen em movimento (2º round de manifestações). E os medos da Arábia Saudita (de ser colhida pelo ISIS/ISIL num movimento em pinça)

15/9/2014, [*] Conflicts Forum, Comentário Semanal de 5/9/2014 
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Abed Rabbo Hadi, presidente provisório do Iêmen
O primeiro-ministro renunciou; o governo foi desfeito; as ruas de Sana estão cheias de dezenas de milhares de manifestantes do grupo Houthi e aliados sunitas; estradas bloqueadas; e o presidente provisório, Abed Rabbo Hadi, parece extremamente vulnerável, depois que suas propostas para resolver a crise e formar novo governo foram rejeitadas pelos manifestantes, em bloco, como “insuficientes”. O porta-voz do grupo Houthi disse que um “grito” ritual, que se ouviria do topo dos telhados de Sana na 5a.-feira [18/9/2014] à noite, marcaria a “terceira fase da escalada” e manifestaria a total rejeição a qualquer aumento no preço dos combustíveis (“providência” que jamais está ausente de qualquer “programa de reformas” do FMI), e rejeição, também, ao “governo corrupto” de Hadi.

Manifestação Houthi anti Saleh em Sana'a (2013) 
Em resumo, o grupamento da tribo dos hadis autodenominados “os houthis” (homenagem a Hussein al-Houthi, assassinado pelo governo em 2004 – logo no início de seis anos de guerra contra os esforços do presidente Saleh para sufocar o movimento) está sustentando notável movimento de resistência, um “renascimento” suficiente para que o movimento já seja predominante no norte do Iêmen (nos governatos de Sa’ada e Amran, e mesmo na capital, embora não tenha havido qualquer tentativa, até agora, de o movimento tomar Sana’a).

Os xiitas zaidistas são comunidade substancial principalmente no Iêmen sunita (representam 40−45% da população) e formam sólida maioria nos planaltos do norte, inclusive na região de Sanaa. Foram componente chave dos protestos que, em 2012, derrubaram o presidente Saleh.

Iêmen - áreas de conflito
(clique na imagem para aumentar)
Apesar dos clamores de que os houthis querem tomar o poder, ou planejam um golpe militar, o movimento tem sido muito cauteloso nas demandas. Não querem a chefia do governo (não querem nem ministérios). Só pedem que o aumento (de 15%) no preço da gasolina seja cancelado, e que os preços voltem aos níveis de pré-2011; e que se cancelem todos os planos do governo para formar nova federação de seis regiões. Rejeitam também a iniciativa do presidente provisório Hadi, para um governo de unidade sob o qual o próprio Hadi nomearia todos os ministros “estratégicos” do Gabinete, mas que incluiria representantes do sul, na parte do governo que caberia aos houthis. Para muitos manifestantes, a iniciativa de Hadi não passa de “mais do mesmo” e, portanto, é inaceitável. A posição que os houthis adotaram (considerada moderada) fez crescer a base dos protestos, embora uma tribo leal a Hadi (os hariths) tenha ido às ruas em Sana’a em apoio ao presidente.

Os houthis conquistaram essa posição de “fazedores-de-reis” em Sana’a, depois de derrotar os esforços de Saleh para “wahhabizar” o governato de Sa’ada dominado pelos Houthi (o presidente Salah expulsara os imãs zaidistas e os substituíra por pregadores de orientação wahhabista); depois de repelir, com muita luta, um ataque da Guarda de Fronteira Saudita em 2009 (no qual os houthis infligiram pesadas baixas às forças sauditas); e depois de os houthis derrotarem o Partido Islah, ligado à Fraternidade Muçulmana, hoje definido como “junco quebrado”, em termos políticos, por comentaristas respeitados.

Iêmen - regiões, áreas e populações
Os houthis (ou Ansar Allah) são parte dos xiitas zaidistas e creem que os muçulmanos devem ser governados exclusivamente por seus próprios imãs, como aconteceu durante mais de mil anos – regra que só terminou em 1962. Mas as diferenças ideológicas entre os zaidistas e a maioria sunita shafi’i não são grandes. As duas seitas viveram harmoniosamente juntas e rezaram nas mesmas mesquitas ao longo de centenas de anos, e muitos sunitas shafi’i alinham-se ao lado dos houthis contra a Fraternidade Muçulmana (Islah) e os salafistas.

O medo dos sauditas é que os houthis – ao efetivamente derrubarem os Acordos de Transição impostos ao Iêmen por um grupo de seis estados do Golfo, e que realmente permitiram a continuidade da velha “ordem” de Saleh, mas sob novo presidente provisório – só façam exacerbar a instabilidade; que enfraqueçam o compromisso do governo de lutar contra elementos anti-sauditas; e que venham a permitir que o ISIS/ISIL crie espaço no Iêmen – mediante o qual o ISIS/ISIL poderá pressionar o reino sauditas a partir do Iraque, por um lado; e a partir do Iêmen, pelo outro lado.

Por trás dessa ansiedade, há mais um medo entre os sauditas, de que a campanha dos houthis esteja subvertendo as estruturas de apoio para os sauditas, tão cuidadosamente montadas (e regiamente financiadas) ao longo de tantos anos; e, além disso, que a firmeza dos houthis e o profundo sentimento antigoverno deles possa vir a instigar os ismailitas (que vivem do outro lado da fronteira estratégica, área que já pertenceu aos iemenitas, mas foi “tomada” pelos sauditas) a reforçar esse ativismo houthi renascido.

A grande manifestação Houthi em 24/8/2014
A campanha de salafisação no norte (apoiada pelos sauditas) já fora neutralizada pelos houthis (embora outros movimentos pró-sauditas e pró-salafistas qataris ainda continuem ativos); também o Islah foi financiado (mediante alguns indivíduos, pela Arábia Saudita; e com outros – para a ira da Arábia Saudita – pelo Qatar), agora estão os dois grupos divididos (com elementos pró-sauditas e outros pró-qataris), e o Islah está fraco. As tribos sunitas que formam o sul cessacionista permanecem tão resolutamente hostis à Arábia Saudita e ao governo em Sana’a (e, consequentemente, estão bem próximas dos houthis) e estão tão fora do alcance dos sauditas – quanto os ismailitas.

Então, se o governo de Sana’a deve passar para efetivo controle dos houthi (xiitas), o que acontecerá às forças que, até o presente foram chamadas de “al-Qaeda” – e que efetivamente têm o controle do território (vale dizer, uma base territorial substancial)? Essa é a grande preocupação dos sauditas. A Arábia Saudita tem laços com a al-Qae’da do Iêmen, mas absolutamente não com toda a organização (de fato, só tem laços com menos da metade da al-Qaeda).

Combatentes Houthis (e a al-Qaeda?)
Será que o ISIS/ISIL aproveitará a chance de cooptar a parte da chamada “al-Qae’da” no Iêmen, que pode vir a ter interesse em jurar fidelidade ao Califa em Mosul? Nesse caso, o ISIS estará plantado precisamente junto ao baixo-ventre macio do reino saudita. O tempo dirá. Mas talvez a melhor resposta ao ISIS/ISIL seria os sauditas e seus aliados ocidentais cederem às demandas dos houthis, em vez de continuar a pintá-los como militantes radicais. 
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[*] Alastair Crookeàs vezes erroneamente referido como Alistair Crooke, (nascido em 1950) é um diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que defende o engajamento entre o Islã político e o Ocidente. Anteriormente, foi figura proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da União Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana (1997-2003), no cargo de High Representative for Common Foreign and Security Policy da União Europeia. Foi ácido crítico da violência e saques militares contra os territórios palestinos e movimentos islâmicos de 2000-2003. Esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade, em Belém. Foi membro do Comitê Mitchell sobre as causas da Segunda Intifada, em 2000. Manteve encontros clandestinos com a liderança do Hamas em junho de 2002. É defensor ativo do engajamento do Hamas no processo de paz na Palestina, a quem ele se referiu como “Combatentes da Resistência".
Crooke estudou na University of St Andrews (1968–1972) do qual ele obteve um mestrado em Política e Economia. Seu livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolutionfornece informações sobre o que ele chama de “revolução islâmica” no Oriente Médio, ajudando a oferecer insights estratégicos sobre as origens e a lógica de grupos islâmicos que adotaram resistência militar como uma tática, incluindo Hamas e Hezbollah. Seguindo a essência da Revolução islâmica desde as suas origens no Egito, através de Najaf, Líbano, Irã e da Revolução Iraniana até os dias de hoje, desbloqueando algumas das questões mais espinhosas que cercam estabilidade na atual paisagem do Oriente Médio
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[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás de narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.


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